Tribuna 12:45

A comichão que fazem Pichardo e Nader, os portugueses de ouro

Isaac Nader corria, em miúdo, pelas ruas de Faro a treinar. Aos 26 anos, foi campeão mundial dos 1.500 metros.
Daniela Porcelli

A pior cegueira está na que é auto-imposta, para uma pessoa ver apenas o que lhe convém. Se existe vulgaridade no atletismo que pratica o extraordinário, ela mora no traje e nos costumes da vitória: a licra do atleta pinta-se com as cores do país, o nome de quem, e do que representa surge em grande, estampado no peito ou no tronco, e poucos segundos tarda, acabada a prova, a enrolar-se na bandeira da sua nação como um herói a exibir a sua capa, envolto nela, para todos verem de onde vem.

Não importam latitudes. Quando se ganha é quase sempre assim, os vitoriosos fervem em exuberância ao mostrarem a sua proveniência e a descrição assenta em Pedro Pablo Pichardo e Isaac Nader, um fresco de se tornar bicampeão do mundo do triplo salto, nos Mundiais de Tóquio, onde o outro foi o melhor do planeta a correr os 1.500 metros. Nos seus pescoços ficaram penduradas medalhas de ouro, mal sustiveram o peso do metal tocou o hino nacional no estádio, ambos recompensados pelo quão se esfolaram, esmifraram e sacrificaram para vencerem e com eles Portugal.

Tenham-no visto, ou não, enquanto cumearam a sua existência desportiva, houve quem, refastelado no sofá ou na esplanada, acéfalo a constatar os feitos de Pichardo e Nader no telemóvel a descansar, com tremendo esforço, nas suas mãos, se tenha indignado ao ver a cor da pele ou a ler os seus apelidos. Aberta a conduta a céu aberto que são as redes sociais, decidiram comentar as publicações feitas pela Federação Portuguesa de Atletismo a enaltecer as conquistas: “Português só no papel”, “Isto está cheio de ‘novos portugueses’”, “Afinal, os refugiados também têm coisas boas” ou “Era melhor que corresse para o país dele”. Eis o esgoto do racismo a jorrar um pouco do seu nauseabundo conteúdo.

Este tipo de tolices, algumas denunciadas pelo Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e Xenofobia, visaram, no exemplo do triplo-saltista, um atleta nascido em Cuba e naturalizado português desde 2017, com vida assente em Setúbal e desde março, devido a troca clubística, com viagens ocasionais a Itália. No caso do meio-fundista, Nader nasceu em Faro, é algarvio de gema, filho de mãe portuguesa e pai marroquino, está ligado ao Benfica e faz poucos anos residente em Espanha, com a namorada e também atleta Salomé Afonso, para ambos treinarem. Isto é contexto, pouco importa para esta estirpe da idiotice humana, a mais incurável das pandemias: julgar as pessoas pela aparência, a cor da pele.

Tais comentários têm aparição cíclica, curiosamente saem da toca quando os atletas ganham, aí é que parecem provocar maior comichão, quando se equipam à Portugal, fazem da bandeira de Portugal seu lençol e dão destaque a Portugal. Esses laivos de discriminação são larga minoria, um caso pode ser advogado de que não mereceriam atenção de modo a não lhes dar palco, mas o sem sentido infeta, sabemos como os algoritmos se banqueteiam com polarizações e mensagens que acicatam o ódio, há que contestá-los, irradiar um pouco de luz sobre a entrada das grutas.

Pedro Pichardo sagrou-se, em Tóquio, o primeiro atleta português bicampeão mundial em atletismo.
Christian Petersen

Rescreve-se que Isaac Nader nasceu em Portugal, cita-se o próprio quando disse não ter “qualquer tipo de ligação a Marrocos”, onde nasceu o pai, outrora futebolista do Farense, nos tempos em que conheceu a mulher portuguesa. “Fui criado e vivi a minha vida inteira em Portugal. Poderia pedir a dupla nacionalidade, mas não quero, não me sinto marroquino, nunca fui, nem nunca serei”, afirmou, há dois anos, à RFi, rádio francesa de emissão no estrangeiro, em vários idiomas, um deles o português. E assim também salienta-se o que é curioso.

Foi a um microfone vindo do país para onde mais de um milhão de portugueses emigraram, no século passado, quando a pobreza e o analfabetismo grassavam em Portugal, que o atleta constatou o óbvio: “Eu, como português, revolta-me um pouco porque não sou menos português do que qualquer cidadão que tenha nascido em Portugal, sou igual a todos - e aqueles que não nasceram, a partir do momento em que lhes atribuem a nacionalidade, são portugueses, descontam igual aos outros, pagam as suas contas, não são cidadãos diferentes daqueles que dizem ser portugueses.”

É o caso de Pedro Pablo Pichardo, nado em Cuba e de lá fugido para Portugal, com o equipamento a verde e vermelho se fez campeão olímpico em Tóquio (2021), conquistou o primeiro ouro mundial em Eugene (2023) e o revalidou agora, no Japão, onde aproveitou a atenção para em bom português, cheio de trejeitos de “epá” e tudo, pedir maior atenção, outro investimento, para atletas portugueses que não ele. “O atletismo é das modalidades onde, no nosso país, infelizmente temos pouco apoio. Dão-nos um bocadinho, olham para nós e pensam que já é muito”, lamentou, jamais falando no singular quando o tema foi o apoio a quem faz vida disto.

No palco conquistado por ele por ocasião do seu ouro, no breve tempo de que dispôs em canal aberto, na antena pública (falou à RTP e Antena 1), escolheu pluralizar: “Por acaso não tenho tantas dificuldades pelos contratos e resultados que tenho, mas seria bonito que o Governo, o IPDJ, a Federação e o Comité Olímpico de Portugal estivessem aí para nós, que nos apoiassem como os profissionais que somos.” Com umas quantas frases, por mais inconsequentes que venham a ser, chamou a atenção para a magra manta de apoios que o país futebolcêntrico tricota para todo o restante desporto. E por mais umbiguista que possa ser no seu quotidiano, só ao dizer “nós” e ao escolher falar, Pichardo certamente fez mais pelo desporto nacional do que qualquer autor de comentários desmiolados nas redes sociais.

Como disse Isaac Nader, “são pessoas que não têm mais nada que fazer na vida do que irem para o Facebook mandar esse tipo de piadas”, simpático no uso do eufemismo. Deviam, aconselhou ele, “perder um pouco mais de tempo e preocupação com as suas famílias, com a sua vida”. Ou como explicou Rochele Nunes, judoca nascida no Brasil e com Mundiais e Jogos Olímpicos disputados por Portugal, ao reagir aos devaneios racistas: “No meu currículo desportivo não consta nada sobre o local onde nasci. Vai estar sempre o resultado e a bandeira do país ou clube que defendi.” Deveria ser de simples compreensão, mas a cegueira seletiva embacia bastante, é coisa maldita.

O que se passou

Zona mista

“Ninguém me convence a mudar de ideias, nem o Papa. Isto é a minha vida, é a minha responsabilidade.”

Foi o que Ruben Amorim disse, ainda na sexta-feira, já depois de Jim Ratcliffe aterrar no centro de treinos do clube, de helicóptero, de propósito para ter falar com ele, e antes de o Manchester United receber o Chelsea, em Old Trafford, para ganhar (2-1) e encher os pulmões do clube com o oxigénio que tanto faltava: foi a primeira vitória em cinco jogos da Premier League com o badalado 3-4-3. Haja boa-disposição e confiança inabalável no treinador português, porque os resultados não têm proporcionado razões para festa.

O que vem aí

Segunda-feira, 22

A 6.ª jornada da I Liga fecha com o Sporting-Moreirense (20h15, Sport TV1).

Terça-feira, 23

O Benfica recebe o Rio Ave na Luz (20h15, BTV) na partida em atraso relativa à 1.ª jornada do campeonato.

Quarta-feira, 24

🎾 Tem início o ATP 500 de Tóquio, no Japão (a partir das 3h, Sport TV2).
Arranca a Liga Europa e, com ela, a participação das equipas portuguesas, com o SC Braga-Feyenoord (20h, DAZN1).

Quinta-feira, 25

🎾 Começa outro torneio ATP 500, o de Pequim, na China (a partir das 4h, Sport TV1).
O FC Porto vai à Áustria defrontar o Red Bull Salzburgo (20h, DAZN1) para a Liga Europa.

Sexta-feira, 26

Começa a 7.ª jornada da I Liga com o Benfica-Gil Vicente (20h15, Sport TV1).

Sábado, 27

🏉 Penúltima jornada do Rugby Championship (ou Quatro Nações, se preferirem): Nova Zelândia-Austrália (6h05, Sport TV3) e África do Sul-Argentina (Sport TV).
🚴🏻‍♀️ Prova feminina de estrada dos Mundiais de ciclismo (a partir das 11h, RTP2).
🏉👩 Final do Mundial de râguebi feminino entre o Canadá e a (12h30, Sport TV).
Mais I Liga: Moreirense-Casa Pia (15h30, V+), Santa Clara-Tondela (15h30, Sport TV1), Estrela da Amadora-AFS (18h, Sport TV1) e Estoril Praia-Sporting (20h30, Sport TV1).
Na Série A, em Itália, há um AC Milan-Nápoles (19h45, Sport TV2).

Domingo, 28

🚴‍♂️ Prova masculina de estrada dos Mundiais (a partir das 8h45, RTP2).
🏍️ MotoGP: Grande Prémio do Japão (6h, Sport TV4).
I Liga: Alverca-Vitória (Sport TV1, 15h30) e SC Braga-Nacional (18h, Sport TV1), Famalicão-Rio Ave (20h30, Sport TV1).

Hoje deu-nos para isto

O 12.º jogo de Mourinho no Benfica aconteceu na Vila das Aves, exatos 25 anos depois do anterior.
MANUEL FERNANDO ARAUJO

A vista a sobrevoar o relvado, mesmo antes do jogo arrancar, não enganava: diante do banco da equipa visitante havia uma mancha de corpos, gente aglomerada com câmaras a fazer de pistolas, dedo no gatilho de disparo e apontadas à magnética figura presente na Vila das Aves. Ninguém é maior do que um clube, a máxima prevalece no Benfica, mas a segunda estreia da carreira de José Mourinho no clube demonstrou, se provas faltassem, a aura intacta de um homem.

O Benfica ganhou por um generoso 0-3 apesar da prestação assim-assim, em especial na primeira parte, muito pouco mudado em relação a exibições recentes, a mão do retornado nunca seria vincado ao fim de apenas dois treinos. A sua presença, sim. Mourinho surgiu com a mesma vestimenta da sua apresentação, fartou-se de cirandar à beira do campo, festejou os golos com efusão, até pontapeou coisas na intempestividade da alegria e depois, chegado ao momento que lhe é tão querido, evidenciou o esplendor de quem suplanta o contexto.

Motivo para jornalistas ingleses e italianos descobrirem os cantos à Vila das Aves, o carisma de Mourinho condimentou a conferência de imprensa pós-jogo com temperos que já introduzira quando foi desvendado como treinador dos encarnados. Às afirmações de vir viver para o Benfica, de bradar a honra de chegar à grandeza do clube e de partilhar, nas suas redes sociais, uma fotografia do sol a espreguiçar-se no Seixal, da varanda do quarto onde acordou com os passarinhos no centro de treinos, falou da “irmandade” da “malta que cresceu junta” no clube, ao realçar os “amigos” que vê em António Silva, Tomás Araújo ou João Rego, falando de jogadores da casa para acariciar o gosto dos adeptos.

No resto do tempo, descontraído e despido de celeumas, José foi Mourinho numa noite de vitória, que correu bem pelo resultado e acalentou a sua presença apaziguadora como é raríssimo ver em Portugal. Rouco na voz não devido ao jogo, mas “do treino de ontem” - outro piscar de olho à mostra de dedicação para adepto captar -, não fintou, mas acolheu com graciosidade as acicatadas perguntas acerca do seu passado no FC Porto. Disse que diz “que sim a tudo”, incluindo aos dragões serem “um dos maiores clubes do mundo”, confessou ter falado com André Villas-Boas e Frederico Varandas após chegar ao Benfica, frisou com naturalidade que não está na Luz “para chatear ninguém”.

Mourinho veio, explicou, ansioso por “usufruir outra vez de um nível alto, de um clube grande, com ambições grandes”, regressado a Portugal tanto anos que “já não [sabe] falar português muito bem”. O treinador mais grandioso nas conquistas pelo FC Porto ter vindo para o Benfica, explicou, “não significa que venha fazer guerra com alguém”. O tempo, sobretudo as intermitências e peripécias da época, encarregar-se-ão de testar se esta elegância de Mourinho será para persistir.

Por ora, o seu estado de graça impera, ele encaixa tudo com uma subtileza arrasadora, até o voyeurismo compulsivo que o perseguiu do aeroporto a casa, de casa para o Seixal, mostrando matrículas de carros ou a fachada da sua residência, e tornou redundante o técnico às tantas também ter mencionado perante os jornalistas que de Azeitão, onde reside, ao centro de treinos do Benfica, “são 20 minutos”. Mas isso, despejado que foi, à força, pelas nossas goelas abaixo, já todos sabíamos, não é?

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