Já não tinha tanta fome. O alerta de Magnus Carlsen, que se vai esfarelando em vários alertas, ecoou em todos os tabuleiros de xadrez, em novembro, quando o genial número 1 do mundo estava a algumas semanas de conquistar o seu quinto título. A fome traduz-se em ambição e motivação. Não é complicado imaginar o sentimento. Se um dia viajarmos todos à Lua, a quinta viagem nunca será tão especial como a primeira.
O norueguês falou também, em abril, sobre prazer e como desfrutar é importante, é um conceito a que regressa de tempos em tempos. “Sem o elemento do gozo, não vale a pena tentar ser excecional em nada.” Agora fica mais fácil juntar as peças do puzzle, mas aqueles desabafos estavam, no fundo, a edificar a decisão final.
Apesar de tudo, dos alertas e temores, nem Garry Kasparov antecipou o que o norueguês anunciou esta quarta-feira: Magnus Carlsen não vai defrontar Ian Nepomniachtchi em 2023 e, por isso, abdica do trono. O anúncio surge ironicamente no Dia internacional do Xadrez.
“Ainda penso que o Magnus é o claro favorito para o jogo [de 2023], mas penso que de certa maneira o Nepo pode ter um arranque psicológico melhor porque já jogou contra o Magnus, e sabemos que o Magnus… não é estar cansado, mas penso que está aborrecido com tantos jogos. E ver outra vez o Nepo pode diminuir o entusiasmo dele para a preparação e jogo”, refletiu Kasparov, em fevereiro, ao St. Louis Chess Club.
Agora nunca saberemos o que daria esse duelo esgotante.
As explicações do campeão do mundo de xadrez chegaram através do seu podcast, “The Magnus Effect”. “Não estou motivado para jogar outro jogo… Simplesmente sinto que não tenho muito a ganhar”, admitiu. “Ainda que esteja certo que o jogo seria interessante por razões históricas e tudo isso, não tenho qualquer inclinação para jogar e simplesmente não vou jogar”.
Aquelas palavras, claro, já viajaram por todo o mundo, abrindo uma fenda enorme na dinastia daquele desporto. Por um lado, diz-se que Carlsen estava a tentar engordar o cachê, por outro sugere-se que era ao formato das mais importantes partidas de xadrez que o norueguês torce o nariz. O presidente da Federação Internacional de Xadrez, defendeu recentemente que o atual campeão era um homem livre para fazer o que bem entendesse.
“Bom, significa que teríamos um novo campeão”, declarou, há sensivelmente um mês, Arkady Dvorkovich. “Mas temos grandes mercados. Temos Estados Unidos, Índia e China. A Rússia está um pouco de fora agora por causa da política, mas temos também a Europa. Estes mercados vão rebentar se um jogador dessa região ganhar. O interesse vai crescer acentuadamente. Estarei feliz com qualquer resultado. Qualquer um desses mercados é ótimo para nós. O dos Estados Unidos é potencialmente o maior.”
Magnus Carlsen, de 31 anos, vai assim abdicar do eventual sexto título mundial. Campeão do mundo desde 2013, quando derrotou Viswanathan Anand, Carlsen começou a jogar xadrez aos cinco anos. Aos 13 já era grande mestre. Aos 22 anos era o campeão dos campeões, transformando-se numa superstar daquele desporto, enriquecendo com patrocínios e desatando a loucura pelo tabuleiro das 64 casas e 32 peças no país natal.
A decisão do xadrezista transporta-nos para outras desta natureza, sobretudo a reboque do boxe, que mantém uns pontos de contacto quanto a ambições e desafios. Rocky Marciano, o tal pugilista que terá inspirado o senhor Rocky Balboa, pendurou as luvas em 1956 enquanto campeão mundial de pesos pesados. O recorde era notável: 49 combates, 49 vitórias, 43 por KO.
Floyd Mayweather Jr. é outro exemplo desta maneira gloriosa de se dizer adeus ao seu desporto: com um recorde de 50 vitórias e zero derrotas, o norte-americano que furou a reforma pelo menos duas vezes para superar, em combates milionários, Manny Pacquiao e Conor McGregor, em 2015 e 2017. Há poucos dias, o imaculado campeão e lenda do boxe admitiu voltar a deixar a reforma em paz, mas seria preciso um combate que aumentasse a conta bancária em 200 milhões de doláres.
Enquanto campeão mundial, Magnus Carlsen derrotou Anand, que tentou recuperar o cinturão, Sergey Karjakin, Fabiano Caruana e Nepomniachtchi. Em dezembro, com o título renovado, deixou outro aviso, mais um: “Só defenderei o meu título em 2023 se o vencedor do torneio de candidatos for Alireza Firouzja”. O iraniano naturalizado francês, de 19 anos, desiludiu em Madrid e terminou essa prova em sexto lugar num lote de oito xadrezistas.
Apesar do encanto pelo póquer e por Las Vegas, Carlsen desmente que este seja o adeus ao xadrez. “Não coloco de parte um regresso no futuro, mas não contaria com isso”, avisou. “Para que não haja ambiguidades aqui: não me estou a retirar do xadrez, vou continuar a ser um jogador ativo.” E, informando que ponderou este fado durante “mais de um ano”, garantiu que estava “muito confortável” com a decisão conhecida esta quarta-feira.
O que se segue na elite do xadrez? Com Carlsen fora da equação, Ian Nepomniachtchi terá pela frente, em longas e eternas batalhas mentais, o chinês Ding Liren.