Râguebi

Ninguém fez mais ensaios com a mítica camisola negra da Nova Zelândia do que Portia Woodman-Wickliffe, que sonhava com o ouro nos 100 metros

A jogadora das Black Ferns fez o ensaio número 50 durante o Mundial feminino de râguebi, que está a decorrer em Inglaterra, ultrapassando o recorde de Doug Howlett. Ela já tinha deixado a carreira internacional, mas voltou para tentar vencer um terceiro título - até porque não se lembra do segundo

Dan Mullan

Portia Woodman-Wickliffe tinha contas a ajustar com o Mundial de râguebi. 

Em 2022, na final do último Mundial feminino, Nova Zelândia e Inglaterra digladiavam-se há apenas 17 minutos quando a inglesa Lydia Thompson tentou travar a frequentemente intravável Woodman-Wickliffe, quando esta já voava pelo flanco esquerdo. O embate, cabeça com cabeça, deixaria a jogadora neozelandesa imediatamente KO. Uma das melhores jogadoras do mundo, seja no râguebi de 15 ou na variante de sevens, não só estava fora da final como a concussão fê-la esquecer-se de todo o jogo.

Woodman-Wickliffe conquistou ali o seu segundo Mundial, até o festejou, mas não tem qualquer recordação desse feito. Um pouco como Christoph Kramer, o médio alemão que se lesionou na final do Mundial de futebol de 2014.      

Este desfecho agridoce foi gasolina para Allan Bunting, selecionador das Black Ferns, que mesmo após o adeus ao râguebi internacional de Woodman-Wickliffe, logo após conquistar a segunda medalha de ouro olímpica nos sevens em Paris 2024, continuou a enviar mensagens à jogadora. Bunting tinha “a sensação”, como confessou ao site neozelandês Stuff, que Portia não havia terminado a sua carreira na seleção de 15 “como gostaria”. 

Tinha razão. Em abril, Portia Woodman-Wickliffe decidiu que não iria ao Mundial de Inglaterra, a decorrer até 27 deste mês, como embaixadora da Mastercard, que era o plano inicial, mas sim como jogadora, no campo, correndo pelo verde como verdadeiramente gosta. 

Jack Thomas - World Rugby

Ainda é cedo para saber se a jogadora nascida há 34 anos em Kawakawa, bem a norte da ilha norte da Nova Zelândia, terriola com pouco mais de 1.500 pessoas, estará de novo na final para vingar definitivamente as memórias que lhe foram roubadas há três anos, mas o regresso já lhe valeu, pelo menos, um recorde para a história: Woodman-Wickliffe já era a mulher com mais ensaios pela seleção da Nova Zelândia, mas com o ensaio conseguido para abrir o marcador no jogo com o Japão, no domingo, saltou para a liderança da lista absoluta, com 50 ensaios, ultrapassando os 49 de Doug Howlett - Portia fê-lo em somente em 30 jogos, enquanto Howlett precisou de 63 encontros para chegar ao anterior registo máximo pelos All Blacks.

Do sonho dos 100 metros ao râguebi

O feito cai-lhe bem, assenta sem discussão a uma jogadora que tanto já deu à Nova Zelândia seja nos sevens, onde é bicampeã olímpica, como na mais tradicional das vertentes. Nascida numa família de jogadores de râguebi (o pai e o tio jogaram pelos All Blacks), o primeiro sonho desportivo de Portia, que deve o nome à peça “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, a favorita dos pais, estava bem longe das corridas com a oval ao regaço, a ultrapassar adversárias. 

E, daí, não tão longe assim.  

“Quando era miúda, queria ser a mulher mais rápida do mundo, correr nos 100 metros de uns Jogos Olímpicos”, revelou em entrevista ao Olympic Channel. Aos 13 anos, Woodman-Wickliffe percebeu que nunca seria campeã no atletismo, mas o bicho-carpinteiro do desporto continuava a mexer no seu corpo. Em menina já tinha experimentado o râguebi, mas por falta de equipas para raparigas na sua escola dedicou-se ao netball, desporto semelhante ao basquetebol que a sua mãe chegou a praticar, e pelo qual viria a tornar-se profissional. 

Mas o seu futuro estava destinado a outros campos, mais relvados. E desde cedo, mesmo que Portia não o soubesse. Em dezembro de 2020, numa altura em que ainda sonhava com o ouro olímpico nos sevens, depois da prata no Rio 2016, falou ao Olympic Channel do dia em que, com nove anos, viu com o seu pai uma repetição do icónico jogo entre a Nova Zelândia e a Inglaterra do Mundial de râguebi de 1995, em que certo jovem arrasou a equipa da rosa. Proclamou então um arrojado desejo: “Disse ao meu pai que queria ser a Jonah Lomu feminina.” E hoje, ser comparada ao malogrado craque, talvez a primeira estrela global do râguebi, “é incrível”, sublinha. 

Hannah Peters - World Rugby

Foi em 2012, no ano em que se tornou profissional de netball e em que estava prestes a ser chamada à seleção nacional, que o râguebi entrou para sempre na sua vida. Graças às redes sociais. Já com os Jogos Olímpicos de 2016 no horizonte, a federação de râguebi da Nova Zelândia organizou uma iniciativa para procurar talentos para os sevens. Woodman-Wickliffe viu o anúncio no Facebook e resolveu aparecer nos testes. Ficou até ao fim e nesse mesmo ano estreou-se pela seleção nacional. Em 2013 deixou definitivamente o netball, para desgosto da sua mãe. 

Mas o netball não a deixou completamente. Woodman-Wickliffe acredita que não se teria tornado numa das melhores jogadoras de râguebi do mundo sem a experiência em outras modalidades. “O meu passado no atletismo deu-me a capacidade de correr de forma eficiente e o netball ajudou-me com o trabalho de pés, visão e a coordenação para apanhar a bola e correr”, explicou.    

Glória e os momentos difíceis

Os primeiros tempos como jogadora de râguebi não foram fáceis, porque ainda não existia profissionalismo na modalidade para as mulheres. Portia treinava de madrugada e ao final da tarde e, para pagar as contas, trabalhava numa escola como auxiliar. O esforço permitiu colher dividendos: Woodman-Wickliffe ajudou a Nova Zelândia a vencer três títulos consecutivos da World Series de sevens, sendo campeã mundial da disciplina em 2013, mesmo ano em que foi chamada pela primeira vez à seleção de 15. No ano seguinte chegaria o esperado contrato profissional para jogar râguebi.  

Daí até cá, a carreira de Portia Woodman-Wickliffe com a camisola negra das Black Ferns foi feita de sucessos, com três medalhas olímpicas nos sevens e dois Mundiais no râguebi de 15. Um terceiro pode estar a caminho. Mas nem tudo foram facilidades. Entre o Mundial de 2017, em que foi a melhor marcadora e a jogadora com mais ensaios, e 2021, Portia não jogou pela seleção de 15. Além do período de covid-19, sofreu duas lesões graves, uma no tendão de Aquiles e outra na parte posterior da coxa.

Assumiu em tempos que chegou a pensar deixar o desporto por não conseguir “ver a luz ao fundo do túnel” e que se foi agarrando às pequenas vitórias da recuperação para voltar a sorrir. De descendência Maori, Woodman-Wickliffe sabe também que não joga só para si, joga pelos seus antepassados. “Na nossa cultura somos ensinados que se não fossem aqueles que estiveram cá antes de ti, não eras quem és hoje”, explicou. Para se animar, Portia vê vídeos de melhores momentos seus. Nada como perceber o que já se conseguiu fazer para dar a volta. “Eu sei que parece meio-vaidoso, mas é importante sentir-me a fazer aquilo que sei fazer”, revelou. 

Não haverá grande perigo de a considerarem arrogante ou presunçosa. Já neste Mundial, uma das capitãs da Nova Zelândia, citada pelo Stuff, colocou em poucas palavras quem é Portia Woodman-Wickliffe, dona do recorde de jogadora com mais ensaios com a mítica camisola negra. “Ela é a mais influente jogadora de râguebi do mundo. E independentemente de tudo o que ganhou e de todos os marcos históricos, para nós que a conhecemos é uma das pessoas mais humildes e com os pés assentes na terra que podes conhecer”, frisou Ruahei Demant.  

No domingo (14h45, Sport TV), frente à Irlanda, há relvado para correr e engordar ainda mais a história.