Crónica de Jogo

Um Benfica de detritos foi menos do que o Gil em tudo, menos no resultado

Os números, às vezes, dizem tudo: o Benfica acabou o jogo com menos oportunidades, remates, bola, passes e cantos do que o Gil Vicente, que foi a equipa mandona e a tomar conta da iniciativa do jogo na Luz. Mas, graças a dois golos de Pavlidis, os encarnados sobreviveram (2-1) à terceira partida em seis dias enquanto procuram, no meio do esforço, um fio que liga uma equipa, por enquanto, sem nexo

JOSE SENA GOULAO

O Benfica vive uma curiosa confluência de tempos.

Acabou de chegar José Mourinho, retornado 25 anos volvidos, é por demais cedo aferir a sua mão na equipa e com quantos dedos lhe tocou, nunca seria em uma semana, ainda menos uma com três jogos, que se notaria o tato de um treinador saído meteoro de Portugal, supersónico e com rasto de fogo na ascensão. Só que ele aceitou vir para um clube, se nos cingirmos aos resultados, sem grande urgência de um novo rumo, afinal os encarnados estão vivos em todas as provas, mas apressado em querer emendar o palpável com os olhos, o futebol praticado, a sensaborona amostra que nem nas Aves ou na Luz, perante o Rio Ave, com o novo técnico, foi capaz de alegrar.

Não ajudou, ao regressar perante os seus de gargantas ao alto, a entoarem papoilas saltitantes enquanto os jogadores do Gil Vicente cumprimentavam os do Benfica, ainda com o breu no estádio destas modernices de iluminação antes dos jogos, que a equipa deixasse, ao fim de 24 segundos de jogo, Murillo receber um passe sozinho na área e com estilo rematar a bola que Anatoly Trubin, mais estiloso ainda, defendeu com uma manápula à andebol. Só ao minuto e meio de jogo os encarnados conseguiriam despachar o adversário da sua área, nervosos e precipitados, a bola a escaldar em pés gelados como as voltas ao relógio seguintes o provaram.

Ao vê-la sem o suspenso Enzo Barrenechea, despida do seu médio pensante, o sagaz Gil carregou sobre um Aursnes devolvido à origem para ser o meiocampista mais próximo dos centrais e apertou a equipa do Benfica tal e qual Mourinho disse, à chegada a Lisboa, querer os encarnados a apertarem os outros. Qualquer receção do norueguês de costas era pressionada, os atacantes adversários também encostavam nos centrais, empurrando as saídas de bola para a aflição de António Silva ao ser incomodado. Os encarnados emperravam, perdiam uma bola atrás da outra na sua metade do relvado, não ligavam cinco passes seguidos.

JOSE SENA GOULAO

Uma delas acionou o pronto-socorro de uma falta feita de imediato, era a pressa a espreitar à entrada da área para acudir a uma falência. Luís Esteves assumiu o livre, bateu para o lado de Trubin e o golo (12’) vindo do talentoso vagabundo, em quem o Gil pensava quando atraía a pressão à sua área para libertar os laterais, lançar longo num deles e, a partir daí, colocar os médios no jogo com futebol apoiado, fazendo avançar a equipa junta e as coisas fluírem com método. O Gil viera à Luz jogar porque quer sempre jogar e marcava no quarto remate à baliza.

Os de Barcelos mantiveram a intenção mesmo quando o Benfica, aos repelões e solavancos, sem que as suas posses de bola decorressem sem lombas, empatou à primeira vez que encontrou alguém entre linhas, por dentro. Com Schjelderup aberto na esquerda, Dahl apareceu ao centro, recebeu um passe de Aursnes e deu um no norueguês, cujo cruzamento, transformado em ressaltos e interceções, acabou no golo esforçado Pavlidis (18’), o sexto da época para o grego que não curou os encarnados das suas intermitências.

Os problemas na saída de bola prevaleceram porque Dedic e Dahl, abertos na génese das jogadas, não davam soluções para a equipa ludibriar a pressão que tapava o caminho por Aursnes, mantinha Ríos a tocar na bola nos trejeitos em que é limitado - de costas para o adversário - e obrigava o Benfica a recorrer a lançamentos longos, nunca para o marginal Sudakov, assim afastado da bola. Incapaz de conviver, pela relva, com a pressão alta de que o Gil Vicente não abdicou, o truque foi sugar a gasolina de Dodi Lukebakio.

Mourinho falara que no depósito do belga não caberiam muitos quilómetros, mas ser fugaz não equivale a ser frugal e pelo canhoto encostado à direita o Benfica, com insistência, alcançou a baliza de Andrew. Foi uma diagonal sua, respeitado por um passe longo de Otamendi, que forçou o penálti para Pavlidis (26’) ir ao sétimo golo da temporada. Virado o resultado, não virou a toada, o Gil prosseguiu com os pitons das chuteiras cravados na iniciativa do jogo que os encarnados, se não propositadamente, pelo menos concederam por não terem como ser de outra forma.

JOSE SENA GOULAO

O Gil prosseguiu com os pitons das chuteiras cravados na iniciativa do jogo que os encarnados, se não propositadamente, pelo menos concederam por não terem como ser de outra forma e remetidos ficavam a lançarem contra-ataques rápidos nas bolas que tinham. O alvo esteve sempre em Lukebakio, veloz a correr atrás de passes que lhe deram um par de remates ambulantes, com ele em alta velocidade. Nunca acertou na baliza, só quando Schjelderup lhe serviu a bola mansa, à entrada da área, aí para o belga a receber com um remate murcho. Estava sintonizado com a exibição do Benfica.

Sentindo a palidez, quem viajara de Barcelos ressurgiu do intervalo insuflado pela inversão de papéis: o visitante a ser grande contra um adversário que parecia pequeno. A segunda parte emulou o arranque da primeira, em segundos o Gil ligou uma jogada com fim na área do Benfica e Santi Garcia rematou, cheio de força, para Trubin defender e ainda ter de se livrar da recarga de Luís Esteves. No canto, o mesmo espanhol atirou a bola contra a barra. Nem frugal, nem fugaz, os gilistas reaparecem fulgurantes e marcariam um golo quando Joelson, lançado para a esquerda, curvou um cruzamento direitinho ao pé de Pablo que seria anulado por fora de jogo.

O brasileiro, carga de trabalhos para Otamendi e António Silva ao segurar bolas de costas, era o avançado que tocava mais na bola perto da baliza. Os pézinhos de lá de Pavlidis recuavam, mostravam-se atrás, tentavam segurar bolas, passavam-nas rumo à própria baliza quando o conseguiam, apelando à calma. O Benfica era um aglomerar de corpos a resistirem, uma equipa a apalpar-se, um conjunto de jogadores sem um fio coerente a dar-lhes sentido. Uma posse de bola durar 15 segundos era uma raridade, uma que se aproximasse da baliza de Andrew era uma raridade.

JOSÉ SENA GOULÃO

Confortável no papel de protagonista, fazendo crer que tem vida feita a ser dominador quase por completo, o Gil Vicente prosseguiu com a sua cara de mandão na Luz. Pela esquerda, Joelson e o lateral Konan foram massacrando Dedic, a quem Mourinho depositou perto a ajuda de um Ivanovic desabituado a estas tarefas, posto na ala e Sudakov empurrado para a outra quanto o combustível de Lukebakio secou e Schjelderup há muito virara um adereço ao jogo. O Benfica já não tinha saída de bola pelos centrais, um médio que filtrasse jogo no meio da pressão, para os derradeiros 20 minutos também ficou sem extremos.

Aí já Murillo rematara à barra, com estrondo, depois Luís Esteves, à beira da área, puxaria do seu jeito na ressaca de um canto para Trubin se ter de esticar todo e resgatar a bola perto do poste direito. Houve uma equipa a mandar na bola, a rematar mais, a ter jogadores seus insistentes no drible, a empurrar os adversários para trás e assim a destratar outra na Luz. A fatura de este ser o terceiro jogo em seis dias não é de ignorar, viu-se como o cansaço dos jogadores agravava o vazio que era o Benfica. Até ao fim seria o Gil Vicente, no papel sem as armas que o Benfica tem nos seus nomes, mas no relvado a encher as balas que tem com mais pólvora.

Nos derradeiros 10 minutos, quando os gilistas quebraram no ritmo - não se viram mais remates -, nem aí os encarnados descobriram alguma calma. Remetidos a serem detritos de si mesmos, restos no meio de remendos entre os quais também já Tomás Araújo, o central cujos pés tanto faltaram para as saídas de bola da equipa, posto a lateral esquerdo, limitaram-se a fazer passar o tempo: aguentaram a bola perto das linhas, mastigavam as posses, demoravam a fazer lançamentos laterais, recuavam passes até Trubin para o guarda-redes os despachar lá para a frente.

O Benfica acabou a urgir o tempo, a querê-lo apressado, que fosse rápido a encontrar o fim, uma equipa que pretende ser campeã remetida a resistir como podia a uma que foi a Luz mostrar o porquê de estar no quarto lugar do campeonato e, em meia dúzia de jogos até ali, apenas ter sofrido golos num deles (contra o FC Porto). Quando o árbitro enfim acabou com a espera, o Gil já com menos um jogador pela expulsão de Hevertton Santos, os encarnados ganharam. E o estádio nem um bruá, nem um assobio, apenas o nada, o ruído ambiente de quem não sabia como reagir - ou suprimia uma reação porque, afinal, o tempo ainda é curto.

O primeiro treino de José Mourinho remonta há nove dias. Fica ardiloso defender que perante o Gil Vicente se viram melhorias face ao que existia pré-aterragem de quem, em tempos, foi um cometa imparável no futebol e agora, devolvido ao contexto de onde descolou, ainda é incerto o quão meteorito voltou. Por enquanto, o ‘seu’ Benfica ainda é feito de detritos, pedaços desgarrados de gente a pular de um treinador para outro, cansada de tantos jogos numa semana. Os números, contudo, são impiedosos: o Gil Vicente acabou com 16 remates na Luz (10 do Benfica, sete defesas de Trubin), 53% da bola, sete cantos (zero dos encarnados) e 395 passes (358) feitos.

Este Gil de César Peixoto é uma equipa valente e valiosa, que sabe jogar, joga bem e jogou na Luz como pouquíssimo vemos alguém jogar se vir da barricada desfavorecida do futebol português assimétrico. O Benfica será mais um interlúdio. Entre quem foi e quem chegou, com eleições à vista, o próprio Mourinho o disse, esta é uma equipa a viver “um bocadinho na zona cinzenta, que não tem identidade”. Nem tempo, afinal.