Quem diria. Quem diria que o tímido Francisco, o canhoto que se refugiava na sua jogada, no seu receber na meia-direita para executar de pé esquerdo, um futebol de repetição sem imposição, se transformaria neste Trincão. Quem diria que o rapaz que, ao chegar ao Sporting, atuava como se tivesse a responsabilidade de, ao mesmo tempo que jogava, encontrar a chave para a paz no mundo, arranjar forma de construir o novo aeroporto de Lisboa e resolver um cubo Rubik, passaria a ser este atacante total, esta exibição de personalidade.
Francisco Trincão, o persistente. Vai uma vez, vai duas, vai três, passará a noite a tentar se for caso disso. Se o serão ameaçava tornar-se um ataque de nervos, passem-lhe a bola, esperem pelo efeito das arrancadas. Caso não dê golo ou assistência, algo sucederá. É só aguardar por um Landerson.
Já a entrar para a parte final do Sporting-Moreirense, o bicampeão contra uma equipa a respirar saúde, Trincão recebeu e foi fazer o seu exercício de insistência. No meio de três, Landerson fartou-se de assistir e tentou roubar a bola ao ex-Barcelona. Penálti, jogo desbloqueado.
O castigo máximo foi batido por Luis Suárez. Até ali, o colombiano somava seis finalizações, sempre do lado infeliz da jogada. Teve de esperar pelo que brotou da criação de Francisco, tal como Pote. Aos 90', o transmontano contava já sete remates. O oitavo foi um penálti, também forçado por Trincão. Assim desfez o Sporting um problema vindo do Minho.
Para Vasco Botelho da Costa, este encontro soava quase a prova de competências para o grande público. Com 36 anos feitos de subida degrau a degrau na pirâmide do futebol nacional, de bicampeão na Liga Revelação com o Estoril à subida à I Liga com o Alverca, passando pelo título na Liga 3 com o União de Leiria, esta foi a primeira vez que o técnico defrontava um dos três grandes num desafio do principal campeonato. Foi como se, depois de temporadas a forjar um estatuto mais na sombra, agora tivesse uma audiência pública, holofotes em cima, um exame de atribuição da carta de “candidato a um banco de dimensão superior”.
Ainda antes do apito inicial, Botelho da Costa chamou os seus jogadores à linha lateral para passar uma mensagem. Já se ensaiava "O Mundo Sabe Que" em Alvalade e aquela imagem, de treinador a falar com os jogadores do Moreirense, repetir-se-ia diversas vezes durante o primeiro tempo, quase sempre com gestos de "calma" ou outros eufemismos para retardar o jogo e encravar as ofensivas do Sporting.
Os leões, no reencontro de Rui Borges com os cónegos, entraram cheios de capacidade ofensiva, atacando com largura e profundidade. Debast, central com pés de bailarino e capacidade de construção de médio criativo, demorou 70 segundos para isolar Suárez, que não bateu André Ferreira. O colombiano partia para minutos de intenso duelo com o guardião adversário, sempre com movimentações felinas, sempre saindo perdedor, fosse por mérito do opositor, fosse por esforço in extremis de Gilberto, aos 12', ou por acertar no poste já depois de ter driblado o homem das luvas, aos 24'.
Com a variabilidade no início dos ataques que os seus precisos centrais conferem, o Sporting fartou-se de encontrar brechas na organização defensiva do Moreirense. Foram oito remates contra zero nos primeiros 25', uma contabilidade que, ao descanso, era de 13-3. Só Georgios Vagiannidis tinha, ao intervalo, mais tiros enquadrados (dois) que todo o conjunto visitante (zero).
Enquanto Alvalade entrava em desespero pelo retardar das reposições de bola por parte do Moreirense, os bicampeões nacionais retardavam o golo. Trincão, num lance à Francisco Robben Trincão, rematou perto do poste direito, Pote tentou um chapéu que saiu por cima, Quenda procurou, de bicicleta, o segundo golo memorável em quatro dias, também ao lado.
Vasco Botelho da Costa, vestido como um aluno da Nova SBE, tentava dar instruções como um jovem universitário que busca que os seus modelos matemáticos funcionem quando é convidado para uma angariação de fundos diante de investidores. Rui Borges aplaudia nervosamente. 0-0 no final da etapa inicial.
O segundo tempo tinha meros nove minutos de vida quando do banco do Sporting veio a óbvia dupla substituição. Ricardo Mangas deixou de andar aos duelos e às disputas pela esquerda e para lá entrou Maxi Araujo, Kochorashvili deu lugar ao cérebro e à ambidestria de Morita.
Com o progredir dos ponteiros do relógio, os locais foram entrando no campo psicológico do nervosismo, no particular universo mental do grande que joga em casa e vê as oportunidades escaparem e passa a encarar o desafio em contrarrelógio, cada minuto em que não se marca sendo uma eternidade desperdiçada. Para ajudar o tempo a avançar para o Moreirense, Vasco Sousa era o melhor átomo do grande universo Botelho da Costa, a peça que tanto ocupava espaços, como dava algum oxigénio à posse de bola. Marcelo provava ser um doutorado do curso de resistência defensiva.
À passagem da hora de jogo, Suárez isolou Maxi de calcanhar, mas o uruguaio, após sentar um defesa, atirou ao lado. Parecia que a noite seria eternamente aquilo: o Sporting a jogar bem, momentos de qualidade e classe, Suáresz a evidenciar o seu talento, tudo terminando em desperdício e recomeçando logo a seguir, como um condenado a esta repetição até ao fim dos dias. Morita para Maxi, o uruguaio abriu as pernas para deixar passar para Pote, remate que foi passe à baliza. Golo? Não, novo loop, a repetição do desperdício, sempre tudo bem até à ineficácia final, no caso cortesia da sétima defesa de André Ferreira na partida. Seriam 10 no total.
O Sporting deixou de ser um condenado ao sofrimento do desperdício a partir de Francisco Trincão. O canhoto tornou-se um craque do dia a dia, do quotidiano, da resolução dos problemas rotineiros. Trincão é o jogador dos jogos pequenos [ler como elogio], o desloqueador, o homem que leva a ganhar os três pontos que não se podem desperdiçar.
Já depois dos penáltis de Suárez e Pote, ainda haveria tempo para o 3-0. Alisson Santos, empenhado em maximizar as oportunidades, fugiu pela esquerda e cruzou para Fotis Ioannidis. Fará dentro de pouco ano e meio que o grego começou a ser dado como alvo do Sporting. Eis a estreia a marcar, ao 25.º remate dos verde e brancos.