Quando elas, umas de branco e outras de vermelho, pisaram o relvado de Twickenham, todas deram-se uns segundos de cabeça erguida para os olhos varrerem as bancadas. E quase todas rasgaram um sorriso de contentamento pelo que viam, os olhos espremidos, as covinhas nas bochechas, os dentes à mostra nas suas caras não enganavam. Era a final do Mundial, só por isso haveria que sorrir, mas era algo mais do que isso. Era um estádio à pinha para as ver.
Ao seu jeito, com foguetes nas costas das jogadoras e fogo nos seus traseiros, o Canadá arrancou o jogo a abrir, reciclando os rucks (quando alguém é placado, cai na relva e corpos se empurram para disputar a bola) num ápice para manter os seus ataques serem um frenesim e marcando cedo o primeiro ensaio. De um alinhamento inglês ganharam a bola, foram acumulando fases até Asia Hogan-Rochester furar a área com um passe da incrível Sophie de Goode, porque com pitada de incredulidade se tem de olhar para ela, uma avançada, segunda linha de posição, supostamente condenada às tarefas do râguebi que há nas fases de molhada, de confusão, mas que se encarrega de chutar aos postes na sua seleção e é quem mais offloads faz neste Mundial.
Isto foi aos cinco minutos. Aos sete, houve outro ensaio na partida cheia de jogo à mão e jogadas dinâmicas, cheias de corridas. Cortesia de Ellie Kildunne, a 15 que avançou no campo, esperou entre a linha de ataque, recebeu a bola e sapateou com a sua leveza de pés para dissecar a defesa do Canadá, o seu paso doble a enganar várias adversárias. Seria difícil a um curioso que tivesse frenado o seu zapping, por momentos, para espreitar o que isto era, não ficar a ver até ao fim - porque o “isto” é um râguebi muitas vezes espetacular, sempre cativante, muito dado a jogar-se de forma bonita.
Aos 25 minutos já havia um 21-5 para as anfitriãs ingleses, como não as emocionadas inglesas também, voltando a caras tal captou-se ao entrarem no relvado e olharam para as bancadas compostas por 81,885 mil pessoas, um Twickenham cheio só para elas, o maior estádio do mundo oval a rebentar de capacidade e finalmente quebrar o recorde de assistência no râguebi (o anterior era de 58,498, fixado em 2023, num Inglaterra-França do Seis Nações), já que oficialmente já era certo: a lotação estava esgotada desde antes do início do torneio. “Nunca vi uma modalidade crescer tão depressa”, disse, na véspera, Sarah Massey, diretora-geral do Campeonato do Mundo.
Com o peso das responsabilidades, a Inglaterra embalou-se com as ideias das suas três-quartos até aos 22 metros do Canadá para, lá chegadas, confiarem no poderio das suas jogadoras mais pesadas e corpulentas, marrando contra as adversárias com mauls, provocando faltas e continuando a carregar nas formações ordenadas. Amy Cokayne e Alex Matthews, duas avançadas, marcaram ensaios. Se as do Canadá tinham um Mundial no bolso a demolirem adversárias na rapidez com que limpam e tiram a bola dos rucks, as de Inglaterra mostravam na final o poder mais clássico da força.
Mas elas já vinham embaladas pela força de um poder. Líder do ranking mundial, a Rugby Football Union, federação inglesa, investe 15 milhões de euros por ano na seleção que começou a profissionalizar-se em 2019, desde então venceram 73 dos 75 jogos feitos, 32 de forma consecutiva até esta final em Londres, capital do país onde têm a melhor liga feminina, as melhores jogadoras e a maior exposição do planeta.
Onde também competem 18 das 32 convocadas do Canadá, uma equipa ainda mais do que meio-amadora, forçada pelas circunstâncias a ter de angariar mais de 500 mil euros numa campanha de crowd-funding para ajudar a pagar os custos que teria neste torneio. Por ano, a federação canadiana investe apenas €5,1 milhões - entre elas e a seleção masculina.
Investidas emocionalmente com tudo, como o público em Twickenham, pelo pé de Sophie de Goode reduziram a desvantagem (21-8) pouco antes do intervalo ao livrarem-se, por momentos, da eficaz invasão inglesa aos seus 22 metros, de processos mais diretos e simples: no descanso, as Red Roses tinham 112 placagens contra as 51 do Canadá.
Eram tarefeiras a defender e, à maior, espertas no método com que atravancavam o estilo ofensivo das adversárias, placando através do choque, agarrando as canadianas sem necessariamente as fazer tombar na relva para tentarem roubar-lhes a bola. A pressão que colocam no momento do contacto era constante. Depois, implacáveis a atacar para embrulhar as jogadas com as suas avançadas, cedo fizeram outro ensaio na segunda parte, por Abbie Ward. Mas, aos 53’, um descuido da Hannah Botterman nivelou uma final que há muito pendia para um lado, ao ver um cartão amarelo por elevar uma canadiana ao primeiro andar, pegando no seu corpo e levantando-o demasiado alto na placagem, sem cair com a adversária.
A Inglaterra sofreu nos 10 minutos sem a sua gigante pilar, em particular nos rucks e na defesa dos primeiros canais de penetração logo ao lado dos sítios onde placavam adversárias. O Canadá marcou o seu segundo ensaio logo a seguir, de novo por Asia Hogan-Rochester. No assalto subsequente aos 22 metros ingleses, com vagas atrás de vagas de ataque alimentados pelas mãos de Olivia Apps, a média de formação suplente posta logo em campo, as valentes anfitriãs moeram-se para aguentar o ímpeto que o Canadá, ao invés de estender na largura do campo, insistiu afunilar contra a muralha de corpos de Inglaterra.
Frustrada a esperança da seleção vice-líder do ranking, a galgar montanhas com os parcos dinheiros que lhe dão, a Inglaterra, refeito o seu 15, teve outro ensaio por Alex Matthews - avançada, pois claro - ao mostrar a diversidade no seu jogo a que se pode dar face ao apetrecho que a recheia. Ganha uma falta, com a bola em Ellie Kildunne e um previsível pontapé dado fora de modo a ter um alinhamento a seu favor, a defesa optou por um up and under (chuto para o ar, de modo à bola cair para dentro de campo e ser disputada no ar), as inglesas apanharam-no, jogaram rápido com passes curtos e surpreenderam o Canadá.
Este seria mesmo a 33.ª vitória consecutiva das Red Roses (33-13) que encantaram uma nação, enchendo estádios em Bristol, Brighton ou Sunderland, cidades mais modestas no seu caminho rumo a Londres, dando outro título bombástico ao desporto feminino inglês após a conquista do Europeu de futebol pelas Lionesses, este verão. Intratáveis na placagem, diversas nas formas de atacar, imparáveis nos foguetes que são Ellie Kildunne e a ponta Abby Dow, as inglesas que fazem do râguebi vida venceram o terceiro Mundial da sua história. Antes, tiveram o de 1994 e o de 2014, este também fruto de uma vitória contra as canadianas.
A febre em Inglaterra em torno das invencíveis jogadoras da sua seleção ficou a 115 pessoas do máximo da lotação de Twickenham, os 81,885 espetadores nada distantes dos 87,192 adeptos que encheram Wembley, também em Londres, faz três anos, quando a Inglaterra venceu o seu primeiro Europeu de futebol. O râguebi feminino explodiu, de vez, à décima edição do seu Campeonato do Mundo. As caras das mulheres que o jogam, antes da final e assim que o jogo terminou, mostrou tudo. Elas não vão abrandar.
Porque são movidas por algo maior, por uma vontade que ainda é necessidade em servirem de inspiração, como um farol de exemplo. As palavras da capitã, Zoe Aldcroft, no relvado, explicam ao que elas jogam: “Esperamos que isto inspire muitas raparigas a pegarem numa bola de râguebi, ou numa de futebol, em qualquer bola que seja, para fazerem desporto. E façam o que quiserem, porque se sonharam grande o suficiente, conseguem lá chegar. Tudo é possível.”