Râguebi

Construía capoeiras, odeia ser placada e quer levar a Inglaterra à terra prometida: Ellie Kildunne, a melhor do mundo no râguebi

A Inglaterra não perde há 32 jogos e quer ganhar mais um, no sábado (16h, Sport TV), frente ao Canadá, para ser campeã do mundo de râguebi, título que perdeu em 2022 nos derradeiros minutos da final. O fenómeno Ellie Kildunne cresceu em cima dessa frustração. A primeira vez que representou a seleção, aos 18 anos, convocaram-na ao engano, pensando nela para ocupar uma posição que nunca tinha experimentado. Sem se entregar, por lá continuou até que, em 2024, foi considerada melhor jogadora do mundo

Ryan Pierse - RFU

De um lado, entalava-a a linha lateral. Do outro, uma jogadora francesa com uma vontade incessante de se agrafar às suas pernas. Tinha uma única opção: acelerar por um estreito canal, uma via melindrosa para passagem de locomotivas. Posta a bola oval a repousar na zona de ensaio após a correria intensa que fez debaixo do braço, a meia-final do Mundial começava a cheirar a rosas-vermelhas.

A frenética Ellie Kildunne não se livrou dos 12 dias de suspensão, estipulados pelo protocolo de despiste de concussões, a tempo dos quartos de final, contra a Escócia, mas esteve apta a participar no apuramento da Inglaterra para o jogo que vai decidir o título, contribuindo com duas validações e enchendo ainda mais o conta-quilómetros. Ao longo dos dois jogos e meio que fez na competição, carregou a bola durante 425 metros, distância que só a neozelandesa Braxton Sorensen-McGee conseguiu superar (509m).

As Red Roses têm um país familiarizado com as suas caras, mas a de Ellie Kildunne, com os pomposos caracóis a desgrenharem-se com a sujeição à ventania provocada pela alta velocidade, consegue ser a mais reconhecível. Os ingleses, povo amigo do râguebi, já há muito tinham comprado 82.000 bilhetes para, em Twickenham, estabelecerem um novo recorde de assistência num jogo feminino. O alarido é sintoma da óbvia expectativa de que possam vencer o Mundial pela segunda vez, a primeira desde 2014.

Para tal, será preciso, diante do Canadá, prolongar a série de 32 vitórias consecutivas. O Mundial é a terra prometida da Inglaterra, que o perdeu em 2022 nos derradeiros minutos da final. A partir do dramatismo começou uma sequência triunfal e nasceu também a melhor jogadora do mundo. “A derrota foi uma das melhores coisas que me podia ter acontecido como jogadora de râguebi”, afirmou Ellie Kildunne ao “The Guardian”. “Foi o combustível para querer ser o melhor que posso.”

Após a meia-final, jornalistas franceses, talvez menos conhecedores das guinadas estratégicas da defesa de 26 anos que representa as Harlequins, no Premiership Women's Rugby, perguntaram-lhe qual o segredo: “Não gosto de ser placada.” A aversão a ter as pernas amarradas faz despontar o instinto de sobrevivência. “É por isso que fujo de pessoas.”

Bob Bradford - CameraSport

Os primeiros tempos de Ellie Kildunne na seleção tiveram contornos surreais. As destacadas prestações pelo Gloucester-Hartpury perspetivavam uma chamada à seleção sub-20. Quando a convocatória foi divulgada, ficou inundada em frustração. O nome dela não estava na lista, mas havia um bom motivo. Afinal, aos 18 anos, tinha sido chamada à seleção principal, notícia que veio anular o momento de tristeza.

O convívio inaugural com as melhores jogadoras inglesas foi, de certo modo, uma farsa. As suas qualidades para desempenhar a função de número 15, posição mais recuada no campo e que beneficia de maior amplitude de movimentos, foram muito elogiadas. Problema? Ellie Kildunne nunca tinha ocupado aquele lugar, algo que não revelou. A adaptação dura até hoje.

Na verdade, não se trata de um mero cumprimento de tarefas, uma vez que o virtuosismo angariou reconhecimentos que lhe permitiram ser considerada a melhor jogadora do mundo em 2024, prémio sustentado pelo bem-sucedido Torneio das Seis Nações desse mesmo ano. No Mundial 2025, chegou aos 42 ensaios em 56 internacionalizações.

Nada mau para quem sonhava ser como Fernando Torres, avançado espanhol que fez brilhar os olhos de uma criança a crescer numa quinta em Riddlesden, nas redondezas de Keighley, no norte de Inglaterra. Inspirando o ar rural, antes de correr com o ovo na mão construía capoeiras para as galinhas os porem e subia a árvores com a camisola do Liverpool. Era um ambiente, perfeito, como disse ao “The Observer”, para “simplesmente aproveitar a vida como ela é”, com “liberdade para explorar” e “simplesmente ser criança”.

Ryan Pierse - RFU

As traquinices tinham a cumplicidade de rapazes que a surpreenderam quando a deixaram a jogar futebol sozinha. O sonho de jogar nos reds parecia distanciar-se. Ellie seguiu os amigos e deu por si a jogar râguebi no meio deles. “Olho para trás e percebo a disparidade entre ser uma rapariga numa equipa masculina”, recordou diante da “GQ”. “Não tinha balneário, tinha que me trocar no carro do meu pai, atrás de uma toalha. Além disso, não me passavam a bola por ser menina.”

Aos 13 anos, ao fim de sete a jogar contra seres naturalmente mais fortes do que ela, passou a integrar uma equipa feminina. “Pode não haver plano A, B ou C, mas restam muitas letras no alfabeto para se encontrar um caminho”, disse na mesma entrevista.

Tem o hábito de se fazer passar por paparazzi, fotografar pessoas aleatórias na rua e mostrar-lhes os registos que captou. Estranha mania de alguém com substancial exposição. O alcance da seleção de râguebi inglesa intensifica comparações com o efeito provocado pela seleção feminina de futebol que se sagrou bicampeã europeia e fez aumentar o burburinho em torno do desporto praticado por mulheres.

Até o nome do grupo do WhatsApp (“Cowboys”) das Red Roses é conhecido e serve de inspiração para a indumentária que os adeptos levam ao estádio. Na final, a Inglaterra está pronta para o rodeo.