Crónica de Jogo

O talento de João Cancelo silencia o ruído húngaro

Num ambiente hostil e contra um adversário incómodo, Portugal ganhou por 3-2. Os magiares arrancaram na frente, a seleção nacional deu a volta, permitiu o empate e viu o seu criativo lateral, destaque deste começo de qualificação para o Mundial, decidir aos 86'

JOSÉ SENA GOULÃO

Poucos jogadores ocupam uma posição tão pouco universal como João Cancelo. No tempo dos moldes e dos padrões, ele joga a quê? Bem, ele Canceliza, faz de João Cancelo, o teórico lateral que ataca muito melhor do que defende, imaginativo, com mais facilidade para sair da pressão com uma roleta seguida de um túnel do que para alinhar com a defesa, é-lhe mais simples fazer um túnel a um adversário do que efetuar uma cobertura burocrática.

É um futebol de marca registada, inventivo, com tudo o que isso tem de bom para quem gosta de chegar ao último terço e de mau para quem passa boa parte da carreira perto da própria área. João Cancelo, cujo talento fica evidente ao olhar para o seu registo de clubes — Benfica, Valencia, Inter, Juventus, City, Bayern —, está no exílio saudita, uma fase comum a vários membros desta seleção.

Portugal exerce, nesta altura, de aliado das ambições expansionistas da liga da Arábia Saudita, como que provando que se pode ser uma seleção de elite e ter vários futebolistas naquele campeonato do Médio Oriente. Nada temam, jogadores, podem vir preencher o vosso sonho de representar o Al-Hilal que não dizem adeus a uma carreira no jogo de seleções.

Na Hungria, João Cancelo foi o toque de talento que fez pesar a lei do inevitável. Com 48 seleções, só algo de muito estranho faria que Portugal, que não falha um Mundial desde 1998, falhasse o torneio de 2026. Depois do passeio da Arménia, veio um 3-2 suado, sofrido, incómodo. Mas os três pontos chegaram nas botas do sui generis João, que já se destacara na primeira jornada, completando dias em grande.

JOSE SENA GOULAO

A Puskás Arena, um dos mais de 40 estádios que Viktor Orbán mandou erguer desde que regressou à liderança do governo de Budapeste, em 2010, consegue rugir como poucos no futebol de seleção. Enche-se de fervor patriota, de ruído em prol da seleção da casa, deixando orgulhoso quem investiu cerca de €533 milhões para erguer este gigante.

A Hungria, ausente da fase final de um Mundial desde 1986, já não é a seleção que foi vice-campeã do principal torneio de seleções em 1938 e 1954. Não estamos no tempo em que os técnicos magiares dominavam a I Liga, chegando a haver 11 épocas seguidas com treinadores húngaros a vencer o título de campeão nacional. A influência de Akös Teszler (o primeiro técnico profissional em Portugal, no FC Porto), de Joseph Szabo (o mais vencedor da história do Sporting) ou de Béla Guttmann (bicampeão europeu pelo Benfica) moldou o jogo em Portugal, mas as décadas passaram e o brilhantismo da outrora potência do centro da Europa foi-se apagando.

Não obstante, mora em Budapeste um coletivo agressivo e organizado. Há ruído nas bancadas, há ruído no campo. Defendeu recuado e procurou oportunidades para sair em contra-ataque. Aos 21', a equipa de Martínez abriu a porta a uma dessas chances. Szoboszlai, o cuidadosamente penteado e tatuado capitão e melhor futebolista húngaro, teve espaço para conduzir, lançando Nagy em velocidade. O cruzamento partiu, de primeira, da esquerda, direitinho à cabeça de Varga. Vitinha, central de improviso na situação, tentou cortar, mas os seus 172 centímetros não ajudaram. Cabeceamento e 1-0.

Portugal reagiu à desvantagem com os primeiros remates enquadrados com o alvo. Depois da meia-hora, houve uma dupla situação para o 1-1, mas Tóth negou as tentativas de Ronaldo e João Neves. Em ambas as situações, o algarvio do PSG apareceu de rompante na área, vindo de uma segunda linha, mostrando como seria possível desmontar o amontoado de homens da casa à frente da sua baliza.

Severin Aichbauer

A maré de húngaros tentava criar um ambiente hostil para Portugal, mas o 1-1 chegaria mesmo. Num lance algo confuso, João Cancelo conseguiu isolar Bernardo Silva, que recebeu e rematou com a precisão que o caracterizam. Havia dúvidas quanto à legalidade da posição do canhoto, mas contou mesmo. O capitão do City chegou aos 14 golos pela seleção nacional, igualando o registo de... Diogo Jota.

Os visitados tiveram alguns momentos em que puderam correr sem grandes portagens, um aviso futuro para Bob. Ainda assim, a lei do mais forte caiu com a naturalidade com que Cristiano Ronaldo vai marcando golos depois dos 40 anos.

Aos 58', o madeirense foi chamado ao ponto de penálti após ser assinalada mão de Négo na área. A rotina do costume, Cristiano como prelúdio de Ronaldo, Ronaldo como antecedente lógico de golo. São 141 por Portugal, 943 na carreira.

Com João Neves e Vitinha em momentos de maturidade e entendimento do jogo fantásticos, a seleção nacional é capaz de algumas saídas de variabilidade e precisão invulgares. Eles mexem-se, rodam, atraem, enganam. Na mais vistosas dessas saídas, abriu-se caminho para o futebol de corredor de Neto dar em João Cancelo, sempre ele. Trabalhou bem, sendo travado por nova boa estirada de Balázs Tóth.

Em vantagem, Martínez manteve o plano que continha Ruben Neves como central perto de Ruben Dias. A aposta ia-lhe saindo cara. Para surpresa de ninguém, os locais bombardearam a área na busca do 2-2, lá chegando aos 84'. Négo cruzou da direita, Dániel Lukács foi com Ruben Dias e, ao segundo poste, Varga, especialista na área, foi com Ruben Neves, especialista da zona à frente da área. 2-2.

A Puskás Arena gritou, exultou. Mas havia mais um toque de talento para repor a lei do mais forte. João Cancelo recuperou uma bola com agressividade, Vitinha deu em Bernardo, este levou a ação para os pés onde havia principado. Com a classe de lateral que é, na verdade, um futebolista total, homem de virtudes e defeitos marcados, João Cancelizou. Portugal sai do começo do apuramento com seis pontos em duas rondas e o lado de lá do Atlântico naturalmente mais próximo.