Crónica de Jogo

A Taça da Liga quer ser amada. E o Braga gosta dela, por amor

Só nos penáltis se decidiu a final da prova, provavelmente, menos considerada do futebol português. Após um início de jogo fulgurante, com um golaço de Ricardo Horta incluído, a decisão da Taça da Liga teve uma segunda parte sem grandes oportunidades de golo de Estoril e Braga, mas os minhotos acertaram todos os seus pontapés a 11 metros da baliza (5-4, após o 1-1 em 90 minutos). E, pela terceira vez, conquistaram a prova

PAULO NOVAIS/LUSA

Ah, a Taça da Liga, a prova das purpurinas e confetes quando alcança o apogeu e altura é de abrilhantar a final com fogo de artifício e a bola de jogo a ser entregue de motorizada como se alguém tivesse encomendado uma pizza. O palco da final four é Leiria, há o castelo lá no alto ao fundo, ressuscita-se um estádio moribundo desde 2004 e a bola de cada golo marcado é diligentemente posta nas mãos de uma funcionária da Liga que de pronto a coloca numa vitrine, recebe tratamento de relíquia, relembro que esta competição tem a pegada de forçar o aparato. Costuma ser assim quando há carência de afetos.

Outrora apelidada de taça da carica pelo primeiro dos patrocinadores ser uma marca de cerveja, a prova encafuada a meio da época já teve sete alterações de formato, vários nomes e uma jigajoga que favorece as equipas mais fortes (entram em competição mais tarde) e pisca o olho, sobretudo, aos ditos grandes, mas cujos adeptos a situam na base da pirâmide da estima. Não será o caso de quem torce por Braga e Estoril: os primeiros já festejaram a conquista da Taça da Liga por duas vezes contra as equipas a que mordem os calcanhares; e os segundos, sobretudo eles, órfãos de títulos de primeiro quilate no futebol português em 84 anos de história.

A maralha inaugural de gritos foi amarela, e cedo, quando o talentoso João Marques, miúdo nado na formação do Estoril, engenhou um passe para a área adversário onde a lentidão de José Fonte a reagir chocou com a ratice esperta de Cassiano. A colisão dos corpos deu penálti e o próprio avançado, sereno e decidido, passou a bola rasteira para um dos cantos da baliza de Matheus para o 1-0. Ao sexto minuto já havia animação, provocada pelo mais modesto dos clubes que protagonizavam somente a segunda em 17 finais sem algum dos badalados grande do futebol português.

O repentino golo abriu as cortinas para um jogo animado, de estilos contrastantes e equipas a darem-se a intenções que provocavam consequências no adversário. A defender-se com uma última linha de cinco jogadores bastante subida, mesmo mantendo a fileira de médios próxima o Estoril punha-se a jeito de ser bombardeado com passes nas costas. Era corajoso e decidido, só que era uma receita para sofrer. Dando a iniciativa na bola ao Braga, quase nunca pressionando os centrais que se instalavam à entrada do meio-campo contrário, os de amarelo demoraram a importunar a sonda que há no pé direito de João Moutinho, os seus 37 anos fartos de saber quais são as coordenadas de uma partida de futebol.

Muita da primeira parte teve-o a ditar o jogo dos minhotos que projetavam os laterais, juntavam Zalazar a Djaló e Ricardo Horta no costado do corredor Abel Ruiz, incumbido de atacar a relva entre os defesas e a baliza. Moutinho massacrou esse espaço com lançamentos longos, o avançado espanhol recolheu um deles para ludibriar um adversário e rematar contra o guardião Dani Figueira, que pouco depois ficaria especado na relva. Num dos dois cantos sacados pelo Braga nas jogadas em que empurrou o Estoril para trás, Zalazar cortou a bola para a entrada da área e Ricardo Horta, sem a deixar a gravidade cumprir a sua missão, rematou-a de primeira, cheio de estilo. Além da pompa e do fausto, esta final da Taça da Liga usufruía de um golaço.

E não tinha quezílias, bate-bocas estéreis e sururus por tudo e nada, nem apitos e cartões a serem apitados ao desbarato. Em suma, estava livre da sintomatologia dos jogos entre os grandes convenientemente apelidados de clássicos onde é classicismo vermo-los a serem afundados nesses episódios. Não desta vez, onde os capitães, ao intervalo, até falaram numa rápida flash interview antes de irem ao balneário, outro sintoma da prova a fazer por que gostem mais dela.

Com o descanso se foi a passividade de um lado e a partida também virou mais gostável, o Estoril regressou para avançar com o seu bloco e pressionar os centrais do Braga quando estes matutavam o início das jogadas. O atrevimento dos canarinhos fez os seus médios acertarem nos momentos em que tinham de apertar Vítor Carvalho e João Moutinho quando os seus três da frente iam perseguir a saída de bola minhota. O milenar médio português passou a receber a bola com companhia, a sua influência minguou e com ela a mão mandona dos bracarenses no jogo.

A animação provocada pela reação estorilista durou uns 20 minutos até à final gripar no ritmo. Algo pachorrento nas trocas de bola quando a posse lhe voltou a sorrir com a entrada da bússola que há em Al Musrati, vindo de lesão, mas, sem ser pressionado, capaz de se impor através do passe, o Braga não acelerou as jogadas para desposicionar o bloco adversário. O físico de Abel Ruiz já o obrigava ao critério nas vezes em que ameaçava as costas dos defesas, o discreto Djaló saiu cedo para ser rendido pelo rapaz Roger, seu semelhante na vontade de ter alguém em campo para desequilibrar pelo drible, a finta e a individualidade - foi tão incógnito como quem substituiu, desprovendo a equipa de alguém que pegasse o jogo pelos colarinhos e o abanasse sozinho. De amarelo, avistou-se um fantasma de Rafik Guitane.

Um jogo mandrião apenas se espreguiçou nos 10 minutos finais, quando o ímpeto minhoto em ir para a frente esburacou a equipa e mostrou alguns escaparates para o Estoril ligar as transições rápidas a que se vetara, de novo. As pilhas de Mateus Fernandes, no meio-campo, resistiam à primeira pressão do Braga pós-perda de bola e iam lançando, quando dava, as setas Wagner Pina e Tiago Araújo, alas capazes de acelerar as jogadas em corridas com a bola. Da canhota do segundo ainda saíram um par de cruzamentos venenosos que o cansaço da equipa não dava correspondência.

O único momento que fez duvidar da inevitabilidade dos penáltis caiu da única corrida de Abel Ruiz nas costas do experiente Eliaquim Mangala, regressado de outras lides e noites pelo futebol europeu com a mesma queda para a precipitação: o central abordou mal uma bola pelo ar, o espanhol apanhou-a e deu um passe para Pizzi rematar, na área, e Dani Figueira salvar o Estoril. A bola teria de parar a 11 metros de uma baliza para se descobrir um vencedor.

A essa distância, o tempo pára e a visão afunila, há julgamentos que puxam a sorte e o azar para esta marinada e esses ditames siameses do destino há-os sempre, mas apenas como condimentos. Nunca são o prato principal. Nos nove pés que primeiro bateram um penálti saíram remates precisos na colocação dados por corpos sem tremeliques, seguros na intenção. Notou-se treino, se não prática prévia pelo menos segurança mental houve, todos acertaram para um acumular de pressão para quem haveria de ser o décimo homem a rematar no instante mais individual do futebol.

Tiago Araújo ficou com essa incumbência e ele acabara os 90 minutos com cãibras, a implorar que alguém lhe alongasse a perna, os músculos a berrarem esgotamento. Quis ele ajeitar a sua tentativa ao cimo da baliza e excedeu-se na força, falhou o alvo. Caíram-lhe lágrimas da cara enquanto os jogadores do Braga desataram a correr pelo relvado entre abraços atabalhoados. Pela terceira vez, a Taça da Liga menosprezada por tantos extraía dos minhotos uma festa que denota amor por um título que aos bracarenses reflete uma evolução. E não é só na sedução que hoje faz ao específico abraço de tantas rugas futebolísticas vincadas em José Fonte e João Moutinho, um quarentão e outro lá quase que ainda vibram com isto.

Fala-se que os planetas alinham-se para a Taça da Liga emigrar e a sua final four ser jogada no estrangeiro, provavelmente em latitudes de Médio Oriente. Ao adepto isso dirá pouquíssimo, então a quem veio do Estoril, desabituados a verem os seus a lutarem por títulos, dirá coisa nenhuma. E tão pouco aos do Braga, que se estarão a acostumar a este caso de amor sério que o clube parece estar a montar com esta competição.