Não está nas nossas mãos nem nas mãos de um torneio ditar o fim de quem quer que seja. Muito menos de Rafael Nadal em Roland-Garros. Amélie Mauresmo, diretora do major francês, admitiu que estava preparada uma homenagem ao homem que 14 vezes festejou em Paris, na catedral da terra batida que o espanhol dominou como nenhum outro ser vivo pré, pós-Paleolítico, o que quiserem, mas Nadal disse que não. A história dá-lhe todo o direito de decidir quando será o adeus definitivo ao sítio onde cimentou uma lenda.
Mas temos de estar preparados para que, sim, tenhamos assistido esta segunda-feira às últimas trocas de bolas de Rafael Nadal em Roland-Garros, aos últimos punhos cerrados, aos saltos feitos de garra, aos tiros imparáveis que procuram apaixonadamente beijar as linhas. Rafael Nadal perdeu na 1.ª ronda de Roland-Garros frente a Alexander Zverev, em três sets (6-3, 7-6 e 6-3) e os próximos meses serão de reflexão. Quer deslizar nesta mesma terra batida daqui a algumas semanas, no torneio olímpico de Paris, depois disso logo se vê. Este encontro, feito de oportunidades perdidas frente ao número 4 mundial, que está a ser um dos melhores desta temporada de pó de tijolo, talvez lhe dê pistas: se houve momentos de evidente dificuldade física, também os houve em que Rafael Nadal pareceu estar apenas uns milímetros abaixo do nível dos mais fortes, naquela atitude competitiva que terá muito pouca comparação por aí fora. O próprio admitiu que se sente muito melhor agora do que há dois meses. Como estará daqui a três meses? Ou um ano? Talvez nem ele saiba.
E por isso temos a obrigação de lhe dar o benefício da dúvida, de dispensar as homilias e sagrados sacramentos que queremos para nossa própria expurgação de tristezas, não do próprio. Aconteça o que acontecer, o homem terá um dia uma homenagem no Philippe Chatrier, court que poucos desdenhariam - bem, talvez os franceses - se um dia mudasse de nome para Court Rafael Nadal. O tributo terá sido feito por Zverev, que teve de subir o nível para passar da 1.ª ronda num torneio onde é um dos favoritos (os apenas três sets do encontro são enganadores) e pela presença da nata da nata do ténis mundial, ali disfarçada de meros fãs, sem camarotes especiais ou equipas à volta: Novak Djokovic e Carlos Alcaraz estavam nas bancadas, Iga Swiatek, a número 1 mundial feminina, tirava fotos como qualquer adepto deslumbrado pela proximidade da história. Talvez não haja homenagem mais doce do que aquela feita pelos próprios pares.
No court, Rafael Nadal ia dando permanentes provas de vida. O azar do sorteio foi indiscutível e o reencontro com Zverev tinha história: há dois anos, o alemão dava água pela barba a um então menos macerado Nadal nas meias-finais quando, no tie-break do 2.º set, Zverev viu o seu pé assumir uma posição anatomicamente mais ou menos impossível. O grito de dor do germânico ainda estará na memória de quem estava a ver aquele jogo, que, por essa altura, já levava três horas de batalha e prometia abocanhar a noite de Paris. Zverev saiu de cadeira de rodas do court, com os ligamentos do tornozelo despedaçados. Nadal seguiu para a final e ganhou.
No início do duelo desta segunda-feira, o despedaçado parecia outro: custava a Nadal engatilhar jogadas, chegar às bolas profundas de Zverev, panzer no fundo do court, com a mão quase na garganta da raqueta para bater a esquerda, uma das suas imagens de marca, tal como as correntes de ouro que lhe invadem a boca, como se o sabor alcalino a metal lhe desse aquele plus. Uma quebra de serviço por parte de Zverev logo a abrir gelou as bancadas, que terão temido um adeus rápido, para mais com o jogo a disputar-se de teto fechado, sob ambiente húmido e pesado, terrível para o jogo de Nadal, impiedoso com quem conta com várias mãos as maleitas que lhe percorrem o corpo, massacrado de lesões, algumas deles colocariam um simples mortal com dificuldade em dar um passo à frente de outro, quanto mais jogar ténis.
Assim não foi, porque Rafael Nadal nunca foi de se deixar ir sem luta e não vai ser agora, nem com 38 anos, nem com os músculos e os ossos todos moídos.
Entre os toques da fanfarra, Nadal equilibrou, foi ganhando confiança. Teve dois pontos para devolver o break com 2-1 no marcador, mas desperdiçou, naquela que seria a primeira de muitas abertas que o espanhol não conseguiu aproveitar - e isso talvez tenha sido o mais estranho e errático neste seu duelo, a forma como conseguiu perdoar as oportunidades que lhe foram aparecendo. Com o set a caminhar para o fim, já lhe saiam bolas mais potentes e profundas, idas à rede eram mais decididas, havia mais variedade de jogo nos braços do maiorquino. Mas Zverev, quase sempre num nível muito alto, fechou com um 6-3 dobrando o break nos momentos finais do parcial.
No 2.º set, Zverev ainda cheirou um break prematuro. Rafa salvou a pele com o aparecimento do serviço, atirando-se ao primeiro salto aéreo de festejo quando fechou o encontro, com um hostia pelo meio: podia faltar-lhe o físico, mas a vontade estava toda lá. E as mãozinhas também, as mesmas com que quebrou o alemão logo a seguir com um amorti delicioso, a transluzir uma entrada nos carris do jogo de Nadal, que por esta altura já subia à rede com facilidade, ganhando ali pontos importantíssimos. Mas com oportunidade para fechar o 2.º set, Rafa deixou-se quebrar por Zverev, entregando o momentum ao germânico, que picou o ponto do 2.º set no tie-break, ao fim de 66 minutos. Mais uma oportunidade perdida.
Com Nadal os milagres acontecem. Voltemos ao tal encontro de 2022, neste mesmo court. O espanhol perdia por 6-2 no tie-break do primeiro set, um parcial interminável. Entre um passing shot corajoso e uns quantos enamoramentos com as linhas, deu a volta e ganhou o desempate por 8-6, num daqueles épicos que só a fibra de Nadal consegue tornar real. A perder 2-0 em sets esta segunda-feira, Nadal precisava de novo milagre para não ser pela primeira vez afastado na 1.ª ronda do torneio que venceu em 2005 à primeira tentativa, ainda era um adolescente.
Nadal abriu o 3.º set entregando a enésima prova de raça e sobrevivência, salvando dois break points e conseguindo o break no serviço de Zverev com um passing shot a fazer lembrar outros dias mais animalescos para o físico do maiorquino. Zverev devolveu a gracinha logo a seguir, Nadal teve nova oportunidade no 2-1 e no 2-2 o alemão carregou e carregou o jogo de Nadal, que salvou incontáveis pontos de break, como quem recusa entregar-se à morte. O break decisivo de Zverev viria quando o marcador estava em 3-3, um passing shot cruel. Daí até final, os jogos seriam todos do 4.º cabeça de série do torneio. O milagre não apareceu.
Talvez Mery, a sua mulher, o tenha adivinhado. Na 3.ª partida, na box dos Nadal, onde o nervosismo e a emoção foi sempre muita, com pais, irmã e tios presentes, apareceu o pequeno Rafa júnior, filho do 22 vezes campeão de torneios do Grand Slam. Mas não seria um prenúncio do adeus definitivo. “Não sei se será a última vez que estou aqui diante de vocês, honestamente. Não tenho 100% de certeza. Mas se foi a última vez, diverti-me. É muito especial sentir o carinho das pessoas, no sítio que mais amei”, explicou em inglês, depois de ter tentado aventurar-se no francês no início das declarações.
A homenagem definitiva ficará adiada, será feita nos termos de Rafael Nadal, no tempo certo, como ele merece. Se acabou aqui, foi uma viagem dos diabos e um adeus que embeleza uma carreira feita de luta, de uma competitividade assombrosa. Até ao fim será esse tenista, um touro não enraivecido, mas certamente decidido. E, por isso mesmo, não vamos dar Nadal por acabado, devemo-lhes isso. Ele dir-nos-á quando assim for.