Ténis

A beleza de Gasquet não resistiu ao tsunami Alcaraz

Na estreia nesta edição do Open da Austrália, depois de ter falhado 2023 por lesão, Carlitos bateu o veterano francês, 17 anos mais velho, por 7-6 (5), 6-1 e 6-2. Após uma primeira partida longa e equilibrada, em que Gasquet mostrou a rara estética da sua esquerda, a contundência e agressividade do espanhol atropelaram Richard

Icon Sportswire/Getty

Um dos traços distintivos dos majors, do quarteto de torneios que constituem a cordilheira dos píncaros do ténis, é serem, no lado masculino, disputados à melhor de cinco partidas. Essa particularidade altera a natureza do jogo, prolonga-o, dá-lhe contornos maratonianos. “É outra modalidade”, costumam dizer, contundentemente, os jogadores.

No entanto, mesmo neste universo dos Grand Slams, é possível que um set inicial tenha contornos quase decisivos, como se definisse o tom de um duelo, lhe desse formas e destinos inevitáveis. Não é uma terça parte do total de parciais necessários para obter um triunfo, é mais uma sentença de vitória anunciada.

Era assim no Carlos Alcaraz-Richard Gasquet. De um lado havia 20 anos cheios de energia e vigor, de contundência e poderio físico, uma máquina de atropelar adversários quando embala e ganha ritmo e cadência; do outro havia um ténis delicado e suave, estético e dócil, cheio de artimanhas técnicas mas preso às debilidades de um físico de 37 anos e duas décadas cheias de aventuras no circuito profissional.

Para Gasquet (agora 131.º do mundo), jogador-artista, o primeiro set era mais que o parcial inaugural. Lá está: nesta maratona à melhor de cinco partidas, sair na frente era fundamental para ganhar ascendente sobre um adversário que, caso se visse na liderança, cavalgaria essa superioridade, usá-la-ia para sugar quem estava na ponta oposta do court da Rod Laver Arena.

Foram precisos 73 minutos de embate equilibrado para decidir a primeira partida que tanto determinaria. O set, resolvido no tie-break, foi para Alcaraz, abrindo caminho para transformar o que estava renhido num passeio, do 7-6 (5) a abrir para um 6-1 e um 6-2, prosseguindo o número dois do ranking para a segunda ronda do Open da Austrália.

Esta eliminatória foi, para o murciano, um duplo regresso. Uma volta à competição, da qual estava ausente, em termos oficiais, desde 18 de novembro, quando perdeu contra Djokovic nas ATP Finals, e ao Open da Austrália, no qual não atuava desde 2022, dado que, em 2023, falhou o major da Oceânia por lesão.

Alcaraz apareceu no recinto à Alcaraz: de manga à cava, dando sprints logo antes do aquecimento, todo ele fúria e correria, parecendo querer assustar o francês desde ainda antes dos primeiros pontos começarem a contar.

Depois de um inverno em que passou algum tempo a treinar na academia de Rafa Nadal em Manacor, Richard Gasquet entrou em Melbourne para nos deixar uma mensagem na memória. Quis sublinhar que, na era do ténis em força e potência, há ainda velhos pintores de quadros leves e delicados, de bolas de trajetórias finas e precisas. No tempo das esquerdas a uma mão, o veterano é um cultor do golpe a um braço, uma raridade perante a uniformização do jogar.

Gasquet deixou meia-dúzia de esquerdas que, pela pouca frequência com que são vistas no circuito profissional, deveriam ser colocadas em reservas naturais, protegidas, ao estilo de animais em vias de extinção. Quando bate com as costas da raquete na bola, de peito para fora, a pancada sai fluida, instintiva, como se houvesse uma conexão mágica do cérebro que a pensa para o braço que a executa.

Enquanto Richard se manteve na discussão do marcador, no tal set inaugural, o duelo foi-se prolongando. O jogo inaugural durou logo nove minutos, o segundo tardou oito, até à hora e 13 minutos necessárias para que o caminho da vitória do espanhol fosse aberto.

À medida que os minutos foram passando, Alcaraz foi ficando com uma expressão de alguma apreensão. No entanto, nos momentos decisivos da primeira partida, quando o nível estava parecido, a consistência de Carlitos prevaleceu. O jovem cerrou o punho, gritou para o seu camarote e, aberta uma diferença entre ambos, a disputa da eliminatória terminou. Começaria a contagem decrescente para o final.

No arranque do segundo parcial, Alcaraz venceu sete pontos seguidos, confirmando a sensação de que a chave da questão estaria na hora de encontro anterior. O murciano acentuou o excelente registo que possui diante de adversários com a esquerda a uma mão, com 23 triunfos em 25 embates, só tendo perdido face a Musetti, em Hamburgo 2022, e Dimitrov, em Shanghai, na época transata.

Da tensão e nervos do primeiro set passámos para um relaxar dos segundos parciais. Gasquet foi fazendo o seu caminho rumo à condição de digno derrotado, merecedor de uma grande ovação da Rod Laver.

A 5-1, no segundo parcial, uma jogada resumirá este encontro para o francês e, talvez, mesmo boa parte da sua carreira. Foi buscar uma bola a um canto do court, agachando-se para lançar uma esquerda maravilhosa, paralela, desenhada a régua e esquadro. O público levantou-se, Alcaraz fez cara de espanto, o quadro parecia perfeito, mas a pancada saiu alguns centímetros fora. Um momento de magia estética, mas competitivamente imperfeito, ineficaz. Eis boa parte da história de Gasquet.

Depois do 6-1 no segundo set, apenas em 30 minutos, a contenda foi fechada em 41 minutos, com 6-2. Alcaraz, que foi tendo de afastar os clássicos insetos que vão esvoaçando por Melbourne e, por vezes, pousam no court, terá agora embate marcado contra o italiano Lorenzo Sonego, 46.º do ranking ATP.

Após o final, John McEnroe pegou no microfone para entrevistar o jovem prodígio. Já habituado a estes discursos de ocasião, conforto que contrasta com a cara quase de adolescente, Alcaraz admitiu que “às vezes” faz pancadas para impressionar o público.

Mas o momento do epílogo da noite de Melbourne foi de McEnroe, com um “calláte la boca” para um espetador ruidoso que soltou algumas palavras depois de uma pergunta da lenda norte-americana ao espanhol. Silêncio, que se vai cantar a música de Carlitos, à procura do primeiro título no Open da Austrália.