Ténis

Eubanks odiava a relva, é filho de um pastor Batista e deu nas vistas como comentador. Agora, é o late bloomer que está a animar Wimbledon

Antes da temporada de relva pediu ajuda a Kim Clijsters, via WhatsApp, sobre como jogar na superfície “mais estúpida” que existe. Estreante em Wimbledon, vai numa série de nove vitórias seguidas na carpete verde que odiava e agora tem como “melhor amiga”. Aos 27 anos, Christopher Eubanks só é profissional há quatro e está nos quartos de final do Grand Slam londrino, onde chegou talvez mais conhecido pelo comentário televisivo e por ter protagonizado as cenas de ténis no documentário sobre Arthur Ashe, o primeiro homem negro a ganhar Wimbledon

Shaun Botterill/Getty

De boné preto virado para a frente e aquecido pela parte arriba de um fato de treino da mesma cor, Christopher Eubanks segura no microfone sem trejeitos de desconforto e fala, e fala, e fala e analisa-se, escalpelizando o seu jogo terminado de fresco. Quando frena a intervenção, esteve um minuto e trinta e três segundos a dar à palavra sem um soluço, articulando ideias e mantendo a fluência na linha de pensamento. “Dá para ver que este tipo andou a fazer algum trabalho enquanto comentador”, exclama o jornalista de fatiota que está mesmo ao seu lado, provocando risos partilhados. O sarcasmo era por demais evidente.

Há cerca de um ano, o norte-americano contemplava a estagnação de raquete em punho e considerava as suas opções. Prestes a chegar aos 27 que agora ostenta, estava fora dos primeiros 150 tenistas do ranking e ia a meio de um 2022 preenchido com 26 torneios, entre os quais 13 foram Challengers, a categoria que está na base da pirâmide do circuito ATP; e o único Grand Slam onde sobrevivera para lá do qualifying a que se tinha de sujeitar fora o US Open. Quando o “Tennis Channel” lhe propôs ser comentador, a vida presenteava-o com ironia servida numa bandeja: ia ser ocasionalmente pago em troca de ir às maiores provas do ténis, àquelas onde realmente queria estar a dar nas vistas, mas não para jogar.

Se a carreira de tenista não zarpasse para outros patamares, era uma foram de explorar outras opções, admitiu, entretanto e há poucos dias, um Christopher Eubanks sorridente por rebobinar a fita a essa altura. “Disse a mim mesmo: ‘Se ainda estiver nos 200s e as lesões não aparecerem, ainda posso fazer outra coisa comigo. Não é assim tão glamouroso ter um ranking à volta do n.º 200”, contou com os pés na relva de Wimbledon, acabado de ganhar a Cameron Norrie na segunda ronda de Wimbledon. Com a mesma ligeireza estando no olho da atenção mediática, demonstrando um à-vontade contagiante para falar em público, Eubanks eliminava o principal tenista britânico (13.º da hierarquia) e capturava os holofotes.

Quando, na segunda-feira, fez a tal aparição no estúdio montado pelo “Tennis Channel” em Wimbledon, evocando experiência não tão longínquas no passado, o norte-americano nascido e crescido em Atlanta, no estado da Geórgia, fartou de sorrir pelo feito recém-alcançado - está nos quartos de final do mítico torneio da relva ao vencer Stefanos Tsitsipas, o quinto melhor jogador do mundo, em cinco longos sets nos quais mostrou o seu martelador serviço e poderosa direita que tentam encurtar os pontos ao máximo. Sem um único break nos três primeiros parciais, Eubanks prevaleceu sobre o cansado grego com “o engraçado que há no ténis”, pelas próprias palavras: “Não vais conseguir jogar sempre no teu melhor, tens é de jogar muito bem em certos momentos e acho que hoje fiz isso.”

Com membros-esparguete e 203 centímetros na vertical, a sua magreza engana. Tem uma envergadura de braços anormal e, apesar de nem constar entre os 20 tenistas com maior velocidade de serviço em Wimbledon, é quem mais ases (85) registou em Londres enquanto luz a esquerda a uma mão que forjou observando Roger Federer. “Vi-o muito em miúdo, ainda hoje volto a ver vídeos dos seus jogos para apanhar pequenas coisas”, revelou, após bater Norrie, brincando como o retirado dono da suplesse tenística se “movia melhor, era muito melhor na rede e, realmente, era simplesmente melhor em tudo”. É uma peculiaridade em Christopher Eubanks, mais uma, ter tanta altura e bater esquerdas da forma vista cada vez menos em tenistas.

DANIEL LEAL/Getty

Mas, por maior que tenha sido o copo do qual tenha bebido para se inspirar, Eubanks largaria a esquerda de braço único se recuasse no tempo. “Tem uma cerca elegância olhar para o Roger, o Stan [Wawrinka] ou o Gasquet, mas passei demasiados anos a lugar contra bolas acima do meu ombro e a aperceber-me o quão difícil é”, explicou ao “Tennis Majors”, já depois de brilhar no piso rápido do Masters de Miami, em março, onde chegou aos quartos de final e finalmente entrou no top 100 do ranking. Foi nessa superfície predileta dos norte-americanos que, em Atlanta, começou a jogar assim que teve idade para correr com uma raquete na mão, lá depositada pelo pai que sempre jogara ténis nos intervalos da sua crença religiosa.

Um devoto cristão evangélico e hoje pastor da Igreja Batista (à semelhança do avô materno), o progenitor Eubanks nutriu o gosto no filho e no seu irmão mais velho, que experienciou as tribulações antes dele. Christopher já falou do “felizardo” que foi ao crescer em Atlanta, cidade onde “tantos tenistas” distavam “uma viagem de 10 minutos de carro” de sua casa, contou ao “Daily Mirror”. Um deles era Jarmene Jenkins, companheiro de treinos de Serena Williams - cujo irmão treinou Naomi Osaka -, outro era Donald Young, antigo top 50 do ranking que o acolheu debaixo da asa e hoje o treina, tendo partilhado sessões em campo com ele quando era adolescente. Bater bolas com adultos já batidos no circuito ATP beneficiou-o, confiando na lógica de se habituar a uma velocidade de pancadas que não teria quando chegasse à faculdade.

Sem receber grandes atenções, em termos de apoios e bolsas, da Federação de Ténis dos EUA, foi estudar Engenharia Industrial e competiu no circuito universitário durante três anos. Outro facto curioso, pois adiou a entrada no mastigador circuito mundial e só virou profissional aos 24 anos, parecido ao que o português Nuno Borges optou por fazer. O poderio do seu jogo, sempre à procura de fortes pancadas, mas carente de constância a fazer bem as pequenas coisas, oscilava entre a promessa do seu talento e a leveza com que parecia encarar o ténis, mesmo que já fosse a prole do pastor evangélico que faltava às missas do pai. “O engraçado de ser filho de um pregador é que não vais aos serviços de domingo quando estás a jogar em torneios”, troçou, também ao “Daily Mirror”, ao explicar como tenta levar a sua fé a “todos os caminhos da vida” confiando que “se fizer o que é suposto fazer, tudo dará certo”.

Só em 2022 realmente se compenetrou em atinar os pequenos detalhes. O “New York Times” conta que Christopher Eubanks decidiu investir em ter um preparador físico consigo a tempo inteiro, atentar ao que come, respeitar as horas de sono e não se desviar um milímetro dos planos traçados pela sua equipa. Sem corta-matos, o norte-americano traduziu em court o seu talento: antes de Miami, era o número 116 do mundo e, quando chegou à relva, conquistou o torneio de Maiorca na semana anterior ao arranque de Wimbledon. Agora, vindo do nada para os seguidores de ténis mais pela rama, está a cumprir com o que visualizou. “Adorava chegar à segunda semana de um Grand Slam, poder dizer às pessoas que não percebem de ténis que fiz uns ‘quartos’ de Wimbledon é outro nível de respeito”, disse a Frances Tiafoe e Ben Shelton, outros jogadores norte-americanos, num podcast do “Ultimate Tennis Showdown”.

No mais mítico torneio do ténis, Eubanks está a ser a história de encantar neste Wimbledon, ao prolongar a sua façanha de late bloomer, termo aplicado a quem tarda em aplicar os frutos dos seus talentos, na relva que desprezava até há bem pouco tempo. O próprio confessou, despido de pudores na postura que lhe tem granjeado admiradores, ao publicar excertos de uma conversa que trocou no início de junho com Kim Clijsters, a antiga número um mundial a quem expôs o seu desgosto pela relva. “É a superfície mais estúpida para se jogar ténis, estou frustrado com os ressaltos inconsistentes quando tento bater cedo na bola”, lê-se nas mensagens de WhatsApp que trocou com a belga, que o aconselhou a não plantar tanto os apoios para mudar de direção e praticar mais em exercícios de movimento de pés.

Quão valiosas foram as dicas agora que é o tenista com mais winners (247) batidos nesta edição de Wimbledon, onde o próximo adversário será o russo Daniil Medvedev, outro longo corpo não muito apropriado, à vista desarmada, para tratar a agilidade por tu ao mexer-se na relva. “Essas palavras sobre odiar a relva nunca mais sairão da minha boca. Agora, é a minha melhor amiga”, brincou Christopher Eubanks, já no centro do falatório do Grand Slam onde pode dizer que deixou a sua pegada. Atar um laçarote dourado ao seu conto de fadas e ganhá-lo, replicando o feito de Arthur Ashe, poderá ser sonhar em demasia. Em 1975, o norte-americano que dá nome ao maior estádio de ténis do mundo (a casa do US Open) foi o primeiro jogador negro a conquistar Wimbledon e, há dois anos, pelas parecenças físicas, Eubanks protagonizou-o no campo.

Foi ele a ser filmado para as cenas de ténis de “Citizen Ashe”, o documentário que narrou a vida e carreira do defunto jogador. Até há pouco tempo, ele era sobretudo conhecido por ter interpretado uma dos ídolos que admira, porque “não é por ter sido um grande tenista” que tem o recinto de Nova Iorque batizado em seu nome. “É por todas as coisas que fez fora do court que o tornaram um ícone”, defendeu ao site da “ATP”. E por mais sorridente de orelha a orelha esteja Christopher Eubanks pelo ténis que tem jogado, o seu maior propósito não é esse: “O maior tema ao qual me desafio na vida é tratar os outros como gosto de ser tratado. Muitas vezes, vemos histórias de grandes atletas no desporto que tiveram uma atitude killer a toda a hora. Mas, para mim, esse estado mental de entrar em campo não combina com a minha personalidade.”