Crónica de Jogo

O vento que levou Otávio soprou a inspiração para longe do FC Porto

Ao minuto 25 ouviram-se aplausos no Dragão para quem não estava lá, o “imortal por direito” Otávio, que já deveria estar a voar para a Arábia Saudita. E sem a sua fonte de criatividade e assistências das últimas épocas, o FC Porto sofreu para não ser previsível e insistente no jogo exterior, ganhando (2-1) ao Farense com um golo no último pó dos descontos

Diogo Cardoso/Getty

Loiro e matulão, Gonçalo Silva é o defesa central mais à direita da Farense e está aberto, junto à linha. Recebeu um passe do lateral na saída de bola, sinal apetitoso para anfitrião da casa onde joga, que saliva pelo vislumbre da refeição que lhe estão prestes a servir. Com um passe para trás a suceder a um para o lado, estão dados dois gatilhos para a equipa pressionar coletivamente, avançar o bloco e apertar as opções de passe mais próximas. Gonçalo Silva tem de chutar para longe, ou tentar uma bola longa, alguma delas será, não tem como.

Do pé direito do central sai uma mistura, ele não tenta pisar a bola e ludibriar, o que lhe sai é um pontapé com força na bola que sai a meia altura, faz ricochete em Galeno, é recolhido por Nico González e deixa um FC Porto de guardanapo no colarinho, garfo e faca apontados para cima presos nos punhos fechados, a refastelar-se com o que é seu forte convidar (o adversário a sair a jogar) e aproveitar (pressionar essa saída com tudo). Num ápice, Toni Martínez estava na fronteira da área a rematar com jeito o 1-0.

Uma equipa sem cerimónia em se regalar como o que é seu costume arranjou cedo (13’) uma vantagem que a relaxasse no meio da estranheza. Jogava sem Otávio, o lançador de ataques e batuta com chuteiras de jogadas nos sete anos com Sérgio Conceição, a voar com asas para a Arábia Saudita. De repente, uma equipa dependente dele tinha que se emancipar das suas qualidades e ter um Farense de bloco baixo, compacto com três médios diante cinco defesas, sem pudores em se resumir à espera por transições, era um denso desafio às ideias coletivas de uma equipa.

Opulento na bola, dominador territorialmente, o FC Porto não se empanturrou com jogadas de fio a pavio. Ter Nico González, estreante a titular, na base dessas obras era um auspício de coisas boas vindouras, no médio espanhol há a leveza de pés e toques bonitos capazes de perfumar a bola, ele tabelou com o calcanhar de Taremi na área para ainda ter uma finta de corpo antes de rematar, também dispararia depois na ressaca de um canto quando uma bujarda de Toni Martínez, a virar-se com a bola e sem aviso, já queimara as luvas de Ricardo Velho. Os dragões espreguiçavam-se pela largura dada Zaidu e João Mário, mas, sem ela, não eram um pomar de inspiração.

A pedir bola ao centro, Pepê era espremido entre os corpos algarvios, Galeno não tinha relva livre para embalar e a discrição da forma de Taremi tão pouco abanava a coesão entre Cláudio Falcão e Fabrício Isidoro, garantes de uma muralha do Farense a meio-campo. Ao reparar na hesitação portista quanto aos caminhos a seguir para desequilibrar a contenção do adversário, o Farense ousou, nos 10 minutos pré-intervalo, arriscar mais na pressão. Subiu linhas, aproximou-se dos centrais do FC Porto e a coragem fez-lhe devolver uma gentileza.

Pressionando, em bloco, uma saída de bola por Iván Marcano, os visitantes forçaram o capitão a despachar a sua decisão. Um passe apressado do espanhol foi intercetado, ele ocorreu atabalhoadamente a socorrer o próprio erro e Rui Costa, sentindo a sua aproximação, descobriu um túnel nas pernas do central, maldade com que achou o espaço para rematar à entrada da área. O desvio no carrinho socorrista de Fábio Cardoso desviou a bola para longe de Diogo Costa (45’+1). Antes do empate, já o acrobata Zach Muscat pontapeara uma bicicleta contra a barra, numa segunda bola de um cruzamento.

Via-se a falta de um certo pequeno dínamo de intensidade e criatividade, sentia-se também. “Otávio, imortal por direito!”, leu-se numa tarja exibida durante o minuto 25, número outrora do jogador que ainda o parecia ter, a sua ida para a Arábia Saudita uma novidade tão recente que nem parecia real. O FC Porto haverá de superar a perda, mas ainda não seria desta, não com ela pintada tão de fresco.

A equipa seguiu intermitente, parca em rasgo, os extremos sem influência em bola corrida e Taremi a parecer um escudeiro de Martínez, ao invés do contrário que fala mais à realidade. Haveria um foguete de Galeno à entrada da área, sem deixar cair a sobra de um canto para estoirar uma tentativa contra a aptidão de Ricardo Velho e um remate do avançado espanhol a cruzamento de Zaidu que o guarda-redes se esmerou para defender. Com força, insistência e correndo por fora do bloco do Farense, assim o FC Porto se redundava em si próprio. Os algarvios sabiam o que esperar e os dragões desconheciam o que inventar.

Do banco viria a sugestão para a equipa carregar mais peso no jogo exterior quando Galeno, o talentoso extremo a quem a tomada de decisão é traiçoeira, recuou na lateral para Gonçalo Borges ficar à sua frente, dois tipos da cozinha fintadora postos do mesmo lado para tentarem desequilibrar. Foi do outro lado a surgir um par de incursões solitárias de João Mário, uma delas encontrou a barra quando pareceu querer cruzar. Mas o sinal estava dado - atacar por fora, cruzar bolas e insistir no bombardeamento da área. O Farense das mil e uma ajudas de Cláudio Falcão e Fabrício Isidoro aos centrais nunca pareceu desconfortável em lidar com esse poucos metros de espaço para cuidar (a linha defensiva mal saía da área).

Houve sufoco do FC Porto, apesar de não asfixiante era suficiente para encostar os algarvios à sua baliza, embora sem os remeter a esse papel. As correrias em transições apareciam ocasionalmente a lembrar os dragões que o plano de há uma semana - deixar Eustáquio na base do meio-campo, a assumir todos os filtros e lançamentos - era truculento. Nos anos 80 do jogo a força da insistência teve Galeno a rematar na área após incontáveis ressaltos, Gonçalo Borges a entusiasmar-se sem proveito por sentar Fran Delgado e Fran Navarro, na pequena área, a ver o guarda-redes tapar-lhe o desvio de um cruzamento do extremo português.

Cruzando, cruzando e insistindo em tornear o bloco do Farense pelas alas, até ao fim os dragões tiveram a sua real força aérea em atividade constante. A ideia parecia, há muito, ser apenas essa. Nos descontos, o fresco Elves Baldé correu sozinho contra o mundo e ameaçou com um remate não tão ameaçador como o cruzamento que só Gonçalo Borges evitou que ficasse à mercê de uma finalização, à boca da baliza.

Com esse deserto de outras soluções terminaram o primeiro jogo no Dragão da época, desinspirados, mas não empatados, porque o volume de uma insistência, mesmo que previsível, pode compensar. E no último pó dos descontos, acorrendo à área com já tão pouco espaço para mais alguém, Marcano foi cabecear na passada mais um cruzamento de Gonçalo Borges (90’+10). Feita a natural abolição de alegria, o FC Porto ganhou com o seu suspiro de alívio, mas não de resolução porque acabaram desavindos com a recente orfandade a que a saída de Otávio os condenou, pelo menos em tão pouco tempo para inventar um penso rápido.

A insistência nem sempre será uma força e na derradeira das jogadas, só as mãos de Diogo Costa evitaram que o Farense repetisse a devolução de um ‘presente’: na última jogada, Matheus Oliveira cabeceou, na área, um dos vários insistentes cruzamentos para a área que tentavam no desespero. O dos algarvios entende-se, o do FC Porto não.