Congratulemos o jardineiro, não é costume ser referenciado nestes termos, mas consintamos, Roberto Martínez quis, em Yerevan, “dar os parabéns ao jardineiro”, quem sabe pela estima de o tipo em causa ter cuidado como se de um jardim floreado, caprichado por cores se tratasse o maltratado relvado do Vazgen Sargsyan, estádio que acolheu este Arménia-Portugal e, há coisa de um mês, se mascarou para anfitriar Jennifer Lopez mais a multidão de corpos que a cantora moveu, fez bailar, saltar e bater o pé com afinco, a confiar no esfarrapado estado em que ficou o tapete.
Benditos tratadores da relva, jardineiros nesta ocasião, por fazerem os possíveis no processo de ressuscitação do campo que nos primeiros minutos, sem vergonhas, mostrou a sua condição moribunda: era Gonçalo Inácio a tentar passes que esquisitos ficavam ao ressaltarem no campo, era Vitinha e todos os seus pequenos toques na bola a terem de lidar com os saltinhos que esta dava, era João Félix, tanto tempo volvido, a querer correr com ela a saltitar para dificultar-lhe a vida.
Era uma tramoia com foco na seleção nacional, usurpadora da posse perante uma encolhida Arménia, recuada no seu meio-campo, disposta num bloco baixo a priorizar o bloqueio de passes pelo centro do terreno. Portugal era forçado a jogar pelas laterais, consentia essa condição, a circulação de sofria com isso, já era muito feita em forma de ‘U’ de um flanco ao outro da área e mais do que isso sofria de solavancos, prova da débil relva à qual João Cancelo deu mais cicatrizes.
Pela direita e já perto da linha de fundo, o lateral embalou contra Nayair Tiknizyan, entortou-o ao simular um cruzamento e interromper a marcha, o arménio ficou a cambelear e ambos a fatiar tornedós de relva com os pés de apoio. O português, com o seu direito, picou a bola que a cabeça de João Félix desviou para golo (10’). A última vez de ambos na seleção fora em novembro do ano passado, frente à Croácia, quando o assistente entre eles já andava pela Arábia Saudita e o marcador, a quem Martínez gabou o “muito ritmo”, ainda não.
Hoje anda por lá a rondar Cristiano Ronaldo, são comparsas no Al-Nassr, o intermitente talento de Félix afastou-se do epicentro do futebol sem sair da órbita da seleção, esta que dá ares revigorados de mandona, de querer impor-se, de gozar do interruptor de confiança que as conquistas servem para ligar. Neste primeiro e dócil jogo pós-conquista da Liga das Nações veio desempoeirada, a vergar os arménios à sua vontade, incapazes de cruzarem a linha do meio-campo contra a equipa que tem dito, repetido e vincado como nunca querer que este seja um trilho para ganhar o Mundial de 2026. Assim o queria quem eles guardam na memória.
Assim quis a coincidência, para quem não é dado a esoterismos, que o golo seguinte, trabalhado por uma curta diagonal de ataque ao espaço, na esquerda, de Bruno Fernandes, antes de receber a bola que depois passou ao outro flanco, fosse marcado, por Ronaldo e a cruzamento de Pedro Neto, ao minuto 21, número de Diogo Jota que agora é do melhor amigo Rúben Neves. Enfim os adeptos portugueses em Yerevan, devotos ao silêncio até então em memória do falecido, puderam gritar duplamente enquanto o capitão apontava um dedo para o céu.
O terceiro golo (33’) viria de um roubo do rotativo lateral, cheio de boa agressividade nas ações, numa tentativa do adversário sair a jogar e também seria dele, após o guardião Avagyan defender a tentativa de Cristiano e a sobra ser reciclada por Félix. Quando houve apito para o descanso a seleção já tricotava jogadas, punha jogadores a sucederem tabelas umas às outras, tentava inventar coisas bonitas. No fundo, divertia-se com o seu poderio.
Regressados ao tapete deformado por crateras, nem um minuto demoraram a roubar a bola inicial à Arménia, partirem num ataque rápido e o último passe ser intercetado, mas não resolvido, por um defesa que deixou a bola à mercê do fulminante pé direito de Cristiano (46’), pronto a disparar o quarto golo de Portugal e o seu segundo na partida, após o hat-trick que já deixara em Yerevan, há uma década. Vai engordando a sua lenda, são já 140 festejos pela seleção nacional.
Esbofeteados com tantos golos, os arménios acumulavam hesitações e indefinições, somando passes errados nas saídas curtas da sua área. Convidavam Portugal a prosseguir, mesmo se um abrandamento fosse natural. A perna destra de Bruno Fernandes foi armada para a bola rasar um poste da baliza, João Neves tentou um remate de pé esquerdo, intratável como tem sido estava Nuno Mendes, um poço de pujança a fugir de adversários. Vitinha compensava a relva pelo destrato de há um mês com pinceladas da sua fina técnica.
O quinto golo surgiria, arraçado de sorte e arte, do subtil calcanhar que João Félix teve de improvisar (61’) para corrigir a bola que Gonçalo Ramos lhe passou e foi desviada para perto da sua cintura. A seleção construía os números de um arraso apenas com golos vindos das arábias.
A pobre Arménia, fraca figura coletiva, apenas depois fez os braços de Diogo Costa tirarem o sabor à relva. O capitão Tigran Barseghyan, cheio de força no seu pé esquerdo, rematou por três vezes, nenhuma realmente ameaçadora, nem através do melhor entre eles os homens vindos da terra onde a Europa já partilha mesa com a Ásia. Entre as tentativas do avançado Portugal dedicou-se, aos poucos, às substituições, que não beslicaram o domínio, mas reduziram a cadência do assomo atacante à baliza adversária.
Dados os parabéns ao jardineiro, Roberto Martínez aproveitou a obesidade da vantagem para dar minutos a aptidões às quais pouco costuma atentar. Nuno Tavares teve as suas correrias na lateral esquerda, para a sua frente entraria Pedro Gonçalves, o já visado Gonçalo Borges teve a honra de substituir Ronaldo sem o jogo estar a findar. Mais dois ou três golos podiam ter aparecido, dava para tudo, até para João Neves acabar a lateral direito e o árbitro, sensível ao fosso que o mau relvado acolhia, acabou o jogo mal o relógio bateu nos 90 minutos.
Valeu como um treino a sério de ataque posicional e desmontagem de um adversário recolhido atrás, mas por demais frágil, este primeiro jogo da qualificação rumo ao Campeonato do Mundo do próximo ano que os jogadores, o selecionador e o presidente da FPF têm frisado ser sua intenção conquistar, assim, sem bicos de pés nem hesitações, agora que têm a prova recente de poderem ser valentes sem celeumas, graças à Liga das Nações. Têm sido barulhentos, anuentes a uma das mais conhecidas canções da artista que motivou o relvado escangalhado onde se andaram a divertir. Na terça-feira, em Budapeste, a Hungria recebê-los-á com outro tapete. Também com outra qualidade e resistência, certamente.