Portugal

No divã com as últimas escolhas de Roberto Martínez antes do Europeu: o “bom exemplo” de Jota Silva e a vontade no coração de Galeno

No cada vez mais limado português de Roberto Martínez ouviram-se as explicações, fossem claras ou subliminares, quanto aos 32 jogadores chamados na última lista do selecionador antes de escolher quem levará ao Campeonato da Europa. O treinador revelou que vai dividir os convocados em três grupos e confessou que tentará aliviar “a fadiga mental” de alguns numa conferência de imprensa que teve a raridade de não se falar sobre Cristiano Ronaldo

JOSÉ SENA GOULÃO/Lusa

A cada conferência de imprensa em que Roberto Martínez desvenda se senta na Cidade do Futebol com um painel atrás, fita a cábula e recita, pausadamente, os convocados para a seleção nacional, as arestas do seu português revelam-se um pouco mais limadas em relação à última vez, isto desde a primeira vez que foi janeiro de 2023, ao ser anunciado como selecionador nacional. Decidido a ter aulas desde o início, essa veia auto-didata do treinador esvaziou, com o tempo, a margem para coisas se perderem na tradução e nos limites da linguagem. Quase ano e meio de vivência em Portugal e pelas provas que nos entram pelos ouvidos, a distância entre o que Roberto Martínez quer dizer e o que realmente diz e passa cá para fora tenderá a esvaecer até que eventualmente se extinga.

Por isso, quando esta sexta-feira disse querer “dar uma oportunidade de desconexão ao jogador para evitar fadiga mental no período de verão”, uma pista, ou quiçá duas, se podem retirar do já não tão subliminar discurso do selecionador nacional. Explicava Roberto Martínez que para os jogos contra a Suécia (21 de março) e Eslovénia (26) haverá três grupos formados a partir dos 32 convocados - “jogadores que podem participar nos dois encontros e, depois, um grupo para o primeiro jogo e outro para o segundo.” Se, depois, estimou em voz alta a vontade em dar algum oxigénio mental e físico a alguns deles a pensar no Europeu, que arranca a meio de junho, é possível deduzir que quem tiver menos minutos no par de partidas mês poderá, então, contar com a presença no torneio.

Ainda no reino das deduções e após revelar os 32 jogadores chamados para este duplo compromisso de março, Martínez realçou que “agora temos 12 portugueses nos quartos de final da Liga dos Campeões” quando definiu Portugal, a par de outras seis, como candidato à vitória no Europeu. O treinador enganou-se, são 10 os que ainda estão na Champions e quatro os que jogam na mesma fase da Liga Europa, talvez a confusão venha dessa conta de somar à qual colou a frase aplicada a todos - “têm nível para lutar e ganhar grandes jogos.” Previsivelmente, esses 14 já estarão na lista pensada para 20 de maio, quando o selecionador anunciar quem levará ao Campeonato da Europa.

São eles Rúben Dias, Danilo Pereira, João Cancelo, Nuno Mendes, Raphaël Guerreiro, Vitinha, Matheus Nunes, Bernardo Silva, Gonçalo Ramos e João Félix, e também Rui Patrício, António Silva, João Neves e Rafael Leão. Alguns nem são habituais titulares das respetivas equipas, mas é conhecida e já vista a apetência do treinador em estimar um leque nuclear de jogadores na seleção. O próprio a indiciou, também, quando referiu as lesões de Diogo Jota, “um jogador importante”, Ricardo Horta e Pedro Neto, que “têm um período para regressar aos relvados e depois avaliarmos”.

Roberto Martínez não os esquece, nem são para esquecer os jogadores não abrangidos pela evidência de ainda irem revezar-se em jogos europeus a meio da semana até quase ao fim de abril. Diogo Costa ou o “desempenho divinal, espetacular” de Pepe em 210 minutos contra o Arsenal, cuja presença na seleção dá “um melhor balneário”, além dos óbvios Bruno Fernandes, Cristiano Ronaldo ou João Palhinha, serão outros a quem os 10 dias deste estágio deverão servir para atenuar a tal fadiga.

Descontados os habituais, restam as interpretações possíveis de aplicar às chamadas dos nomes mais inesperados.

Com João Cancelo e Diogo Dalot tão cimentados durante a qualificação, ambos com rendimento demonstrado, difícil será que João Mário, lateral direito do FC Porto, conste na lista para o Europeu. Sem o elogiado Diogo Jota, não um extremo mas um avançado que pode partir da esquerda, que deverá recuperar da lesão a tempo de afinar a forma, a chamada de Bruma, apto a render, sobretudo, a partir desse lado, será ínfimo porque dessa faixa também partem João Félix e Rafael Leão - este último cada vez com maior protagonismo na seleção. O outro lado, onde Martínez fixa o ponto de partida de Bernardo Silva na dinâmica ofensiva, é o predileto de Francisco Trincão e ‘Chico’ Conceição, dois desequilibrados pelo drible e risco de partirem para cima dos adversários.

Nenhum foi mencionado pelo selecionador nas suas respostas, embora o perfil de ambos afunile para aí: são extremos que rendem mais a jogar de pé trocado, encarando jogadores para tendencialmente ganharem espaço a poderem definir a jogada no pé preferido, cruzando bolas venenosas na direção da baliza. Bernardo Silva fá-lo sem a velocidade de ambos, tão pouco sem o risco, nem a vertigem, o que traz coisas boas e más. Faça falta ou não, Trincão e Conceição, estreantes em convocatórias de Martínez, são um perfil de extremo que não existiu na direita do ataque da seleção nos últimos 14 meses.

Entre as poucas experiências na convocatória sobra a de Jota Silva. Há dois anos, o atacante do Vitória ainda estava na II Liga com o Casa Pia. Sem detalhar as características do jogador, Robert Martínez elogiou “o bom exemplo” que é para “os jogadores portugueses”, porque veio dos escalões inferiores e nunca visitou as seleções jovens. Por fora, na estética, um Jack Grealish à portuguesa pelo cabelo com bandolete e as caneleiras coladas aos tornozelos, além das meias em baixo, não será inocente a sua convocatória numa ronda com jogo em Guimarães, mas isso nunca seria a única razão.

Visto à luta individual, Jota Silva não será o atacante mais talentoso da seleção, nem do lote dos convocáveis, no que à capacidade de ter rasgos criativos com a bola, inventando artimanhas para se livrar de problemas. Todo ele é vertigem e velocidade, um jogador que prospera se tiver espaço para atacar nas costas dos defesas e vive em desmarcações constantes. No lugar-comum que o selecionador utilizou, “é um jogador diferente”. É mesmo. Além do outro Jota da seleção, lesionado, este Jota Silva é um protótipo de atacante para lançar na profundidade e ter em campo com o intuito de ameaçar constantemente a linha defensiva adversária. Como o seria, por exemplo, Galeno.

O luso-brasileiro foi convocado pelo país de nascimento e optou por o representar. Roberto Martínez indicou, falando sobre ele, que “para jogar pela seleção é muito importante o jogador querer, ter uma vontade que saia do coração” para “representar o povo português”. Diz que falou com o extremo do FC Porto. Não revelou se trocou palavras com Pedro Gonçalves, a quem também ele chama Pote, reconhecendo o “muito azar” sofrido pelo híbrido jogador do Sporting, que entre o meio-campo e o ataque leva 16 golos e 13 assistências. “A mensagem para o Pote é continuar com o que está a fazer e haverá sempre oportunidades. As lesões, o azar e a sorte fazem parte da carreira de um jogador. As portas da seleção para um jogador que está num bom momento podem estar abertas”, explicou.

Os sinais dados por Roberto Martínez desde a sua chegada contradizem o dito por ele. Nem sempre o treinador entreabriu essas portinholas para jogadores exteriores ao núcleo duro que foi priorizando com o tempo.

As declarações de Roberto Martínez quanto à lista de 32 convocados:

JOSE SENA GOULAO/Lusa

A escolha de Galeno

“O nosso processo é sempre o mesmo, acompanhamos os jogadores durante um período de tempo e ontem fizemos a lista. Depois dos jogos das equipas portuguesas na Europa é o momento de fazer a lista, então, não tivemos de alterar nenhum jogador. Primeiro, para jogar pela seleção é muito importante o jogador querer, ter uma vontade que saia do coração, representar o povo português é especial. Acompanhámos o Galeno durante o último ano, é o nosso trabalho, agora precisamos de respeitar. Falei com o Wenderson, ele gostaria de jogar pelo Brasil e gostamos de respeitar isso. Desejo o melhor para ele, mas precisamos de jogadores que tenham o coração na nossa seleção.”

E a lesão de Pote, na véspera

“Todos os jogadores têm uma história diferente, acho que o Pote está a ter uma época espetacular, 16 golos e 13 assistências, acho que teve muito azar. A lesão chega num momento difícil, as lesões fazem parte da vida de um jogador e ele vai voltar ainda mais forte, mas o Pote tinha todas as opções para estar no estágio.

É um período de recolhe de informação, a mensagem para o Pote é continuar com o que está a fazer e haverá sempre oportunidades. É voltar ainda mais forte, as lesões, o azar e a sorte fazem parte da carreira de um jogador. As portas da seleção para um jogador que está num bom momento podem estar abertas.”

Jota Silva, Chico Conceição e Trincão

“Estar na pré-lista mostra que os jogadores têm qualidade para jogarem na seleção. Depois, chegar à seleção é um momento único na carreira. No estágio de março temos de ter informação para uma equipa equilibrada e com as maiores valências para o Europeu. É aqui que durante os dois jogos amigáveis contra a Suécia e a Eslovénia todos os jogadores terão uma oportunidade muito boa para os jogadores mostrarem o que podem trazer à seleção.

O Jota Silva é uma figura de uma equipa que está a fazer uma época muito boa e um exemplo, também, de um jogador que chega com um caminho diferente. É um jogador que pode dar um exemplo para outros portugueses de que a porta da seleção pode estar aberta. É um jogador diferente, gosto da versatilidade, trabalha no duro e é competitivo, jogar na II Divisão [estava lá há dois anos] dá umas valências diferentes. Vi o seu último jogo com muita atenção, está num momento muito bom e mereceu chegar à seleção. No futebol, quando estás numa equipa que joga bem, com uma boa dinâmica… O Jota representa isso e é um bom exemplo para jogadores que não estiveram nas seleções jovens.”

O regresso de Nuno Mendes, um lateral esquerdo

“É importante, o Nuno Mendes agora está num momento muito bom, trabalhou muito bem, está num clube com muita exigência e os seus desempenhos estão no máximo nível. É importante podermos trabalhar com o Nuno para os dois jogos e ver como ele está. Na esquerda, temos o Raphäel Guerreiro, podemos jogar também com o João Cancelo ou o Diogo Dalot, mas o Nuno Mendes dá-nos uma opção diferente dentro do plantel.”

Rafael Leão e a sua recente forma

“O Rafael tem muito protagonista na seleção, gostei muito da sua personalidade, tem um papel importante, mostrou uma maturidade muito boa durante os jogos da seleção. É um jogador muito importante para nós.”

O eterno Pepe, que tem 41 anos

“O desempenho do Pepe na Liga dos Campeões foi divinal, espetacular. Vê-lo a defender durante 210 minutos contra a melhor equipa de ataque da Premier League foi incrível. Por isso joga no nível em que está a jogar, é um profissional exemplar e, para nós, está apto. O nosso balneário é melhor quando o Pepe está na seleção. Vamos ver como o Pepe termina a época, mas ele está a desfrutar do seu papel na seleção. Para nós, é uma figura importante.”

Lista alargada, com 32 jogadores

“É um formato para março, um período muito difícil para os jogadores, fadiga mental e muitos jogos, precisamos de lidar com isso. Há três grupos: jogadores que podem participar nos dois encontros e, depois, um grupo para o primeiro jogo e outro para o segundo. Os minutos serão em relação com a situação dos jogadores e o que fizermos na fase de apuramento, além do que queremos trabalhar taticamente com os adversários. Na segunda-feira daremos a lista de 23, 24 jogadores para o primeiro jogo. Ainda temos os jogos do fim de semana e os futebolistas têm compromissos com os clubes, mas o formato é claro - três grupos com um foco para trabalhar a qualidade e dar uma oportunidade de desconexão ao jogador para evitar fadiga mental no período de verão.”

As seleções mais fortes no Europeu

“O Europeu tem as melhores seleções da Europa, não há favoritos, há candidatos. Acho que há sete que têm jogadores a trabalhar nos melhores balneários do futebol europeu. Gostamos de responsabilidade e expectativas, o primeiro passo foi o apuramento, agora precisamos de trabalhar na lista final para o torneio. A diferença entre chegar longe e ficar pelo caminho na fase de grupos é o nível que podemos dar nos primeiros jogos. As seleções de França, Inglaterra, Espanha, Bélgica, têm jogadores que podem ganhar a qualquer adversário e também acho que a Alemanha e a Itália têm uma competitividade nos torneios que fazem delas candidatas. Agora temos 12 jogadores portugueses nos quartos de final da Liga dos Campeões, têm nível para lutar e ganhar grandes jogos. Não tenho dúvida de que podemos competir com as melhores seleções da Europa.”

Os jogadores que irão estar no Europeu

“No futebol, uma semana é uma eternidade, tudo pode acontecer. Trabalhamos no dia a dia para ganhar informação e, depois, há dias de tomada de decisões. Ontem [quinta-feira] foi um dia para tomar decisões, agora podemos trabalhar com muitos jogadores, tenho muito entusiasmo para o estágio porque ter 32 jogadores é uma oportunidade única, mas agora estamos a recolher informação. Depois, a 19 de maio - porque a lista [final] é a 20 de maio - será um dia para tomar decisões.”

Os ausentes desta lista

“Acho que agora temos oportunidade de que a UEFA pode aumentar o número de jogadores na lista, no Mundial foram 26, para nós, gostaríamos de ter 25 ou 26 jogadores. Em temos um workshop na Alemanha e poderemos falar disso. O Diogo Jota não está, é um jogador muito importante, além do Ricardo Horta e do Pedro Neto, que agora têm um período para regressar aos relvados e depois avaliarmos.”

A hipótese de jogar de várias formas

“Hoje os sistemas de jogo trabalhamos de forma diferente, as ligações em campo são diferentes, trabalhamos para ter uma equipa equilibrada e temos muitas opções para executar conceitos táticos diferentes. Para um treinador, isso é muito bom. Somos uma equipa que pode jogar com bola, sem bola, muito forte nas transições, temos muitas opções para termos um plantel equilibrado.”