Opinião

O Desporto em Portugal: o que os portugueses precisam de saber

Portugal é o país onde, por exemplo, parte das receitas das apostas desportivas numa liga estrangeira revertem para a federação que represente a modalidade por cá (através do Imposto Especial de Jogo Online). Ou onde o Estado, ao contrário do que se possa pensar, não assume a responsabilidade de definir um número mínimo de horas a lecionar de Educação Física no 1.º ciclo

Fernando Pimenta, dono de 145 medalhas internacionais, ficou em 6.º lugar na prova de K1 1000 metros dos Jogos Olímpicos de Paris.
OLIVIER MORIN

O desporto em Portugal: o que os portugueses precisam de saber

1. Segundo os dados do último Eurobarómetro de desporto e atividade física, Portugal é o país da UE com pior atividade física: 73% dos portugueses dizem não praticar atividade física ou desportiva. Se queremos aumentar o número de atletas que chegam ao topo da pirâmide (alto rendimento), precisamos de alargar a sua base, isto é, aumentar rapidamente o nosso índice de prática desportiva;

2. Segundo o INE, Portugal investe no desporto cerca de 40€/habitante, enquanto a média na UE é 113€/habitante. No Orçamento de Estado (OE) para 2024, o Governo dedicou cerca de 50M€ para o desporto. Se é verdade que o valor é superior ao ano anterior, também é verdade que só em 2024 o valor previsto para o desporto no OE atingiu os valores pré-pandemia (2019). Para além disso, para termos uma melhor noção da realidade do financiamento ao sistema desportivo, só o orçamento da Federação Portuguesa de Futebol (120M€), para o mesmo período, é mais do dobro do que o Estado investe em todo o desporto nacional;

3. Há uma ideia generalizada que os contratos de desenvolvimento desportivo entre os Municípios e os clubes desportivos servem para financiar a formação desportiva. Quem anda no desporto sabe a verdade: são as famílias que estão a suportar os custos de formação desportiva das crianças e jovens portugueses, por via do pagamento de mensalidades. Uma larga maioria dos clubes desportivos aloca os apoios financeiros provenientes dos Municípios para os plantéis/atletas seniores;

4. Em 2015, o Governo de Portugal aprovou o Decreto-Lei n.º 66/2015 que veio criar o IEJO – Imposto Especial de Jogo Online nas apostas desportivas. Apesar de se dever exclusivamente ao sistema desportivo as receitas geradas por este imposto (pois sem eventos desportivos não há apostas desportivas), a verdade é que apenas 37,5% das receitas deste imposto especial são transferidas para organizações desportivas;

5. Apesar do Decreto-Lei, referido no ponto anterior, instituir que parte das receitas provenientes do imposto especial é atribuída à federação desportiva que organiza o evento alvo de aposta, a verdade é que o Estado está a fazer uma interpretação além da lei. Por exemplo, não é a Federação de Desportos de Inverno de Portugal que organiza a maior competição mundial de hóquei no gelo (a NHL - National Hockey League), mas é essa federação que está a receber as receitas provenientes do IEJO aplicadas às apostas desportivas dessa competição. Para termos noção do que está a acontecer, isto significa que, só nos últimos 4 anos, a Federação de Desportos de Inverno recebeu mais de 4 milhões de euros provenientes deste imposto especial. A injustiça que este Decreto-Lei está a criar no sistema desportivo sente-se ainda mais quando umas das modalidades desportivas menos praticadas em Portugal, por razões óbvias, são precisamente os desportos de inverno.

Neste ponto, e a título de curiosidade, os 4 milhões de euros que a Federação de Desportos de Inverno recebeu de receitas com apostas desportivas dariam para pagar, durante 4 anos, 1141€, todos os meses, aos 73 atletas que participaram nestes Jogos Olímpicos;

6. Cerca de 75% das receitas provenientes do Imposto Especial de Jogo Online são para a Federação Portuguesa de Futebol e para a Liga de Portugal, isto é, mais de 50M€. As consequências são óbvias: desequilíbrios no sistema. Enquanto uns vivem com milhões, outros (sobre)vivem com tostões, e por mais esforço que outras federações desportivas possam fazer, sem capacidade financeira estarão sempre limitadas. Note-se que na vizinha Espanha, foi celebrado o Pacto de Viana, em abril de 2020, que veio criar um mecanismo solidário que faz com que o futebol abdique todos os anos de vários milhões de euros para os programas de preparação olímpica e paralímpica espanhóis. Em Portugal, desde 2015 que este é um tema tabu. Os sucessivos governos, conscientemente, têm fechado os olhos;

7. Ao longo dos últimos dias, fruto das medalhas históricas do ciclismo de pista nos Jogos Olímpicos Paris 2024, muitas foram as pessoas que relembraram (e muito bem!) a importância do investimento no Velódromo de Sangalhos (um Centro de Alto Rendimento do ciclismo, inaugurado há 15 anos no concelho de Anadia). O que os portugueses precisam de saber é que essa infraestrutura desportiva, como o Centro de Alto Rendimento da canoagem em Montemor-o-Velho e outras, foram esmagadoramente comparticipadas por fundos europeus. O problema é que nem o Portugal 2020, nem o Portugal 2030 (a decorrer) criaram, até ao momento, qualquer oportunidade de financiamento para a construção de novas infraestruturas desportivas. Como se não bastasse, o famoso PRR, com valor total superior a 20 mil milhões de euros, não tem qualquer verba prevista para construção ou requalificação de infraestruturas desportivas;

8. O desporto em Portugal sobrevive quase exclusivamente na base do voluntariado. Os portugueses precisam de saber que a esmagadora maioria dos dirigentes desportivos responsáveis por tomarem decisões fundamentais no desenvolvimento das diferentes modalidades desportivas são voluntários e não se podem dedicar à sua federação desportiva (ou clube desportivo) a tempo inteiro;

9. Não é possível comparar o desporto escolar ou o desporto universitário dos EUA com o existente em Portugal. Nos EUA, a formação desportiva está nos liceus e nas universidades, em Portugal está nos clubes desportivos. Claro que é possível melhorar o trabalho que é feito no desporto escolar e universitário, mas quem anda no mundo do desporto sabe a verdade: a esmagadora maioria dos atletas que participam nas competições escolares e universitárias são na realidade atletas federados já filiados nas suas federações desportivas. Para o desporto escolar e universitário servirem para alargamento da base da pirâmide desportiva, isto é, para atraírem para o sistema mais praticantes desportivos (em vez de serem espaços de competição dirigidos para atletas já federados), teriam que rever os seus modelos competitivos de forma a organizarem competições regulares o ano inteiro, em vez de competições esporádicas (realidade atual). Isso implica uma mudança brutal de paradigma e um enorme investimento financeiro (que só é possível com o apoio do Estado);

10. São os agrupamentos escolares que definem a carga horária da disciplina de Educação Física no primeiro ciclo de ensino (1.º ao 4.º ano de escolaridade). O Decreto-Lei n.º 55/2018 estabelece 5 horas de carga horária semanal para Educação Física, Artes Visuais, Expressão Dramática/Teatro, Dança e Música. O que os portugueses precisam de saber é que não existe uma carga horária mínima para a disciplina de Educação Física no primeiro ciclo e que, portanto, como o Estado se coloca de fora de definir a obrigatoriedade de carga horária para esta disciplina, tal facto fica à consideração exclusiva das direções dos agrupamentos escolares. Isto num país que hoje se lamenta de ter os piores índices de prática desportiva na UE;

11. O serviço público de rádio e televisão é atribuído pelo Estado à RTP, por via de um contrato de concessão. Este contrato de concessão, no que diz respeito à cobertura dos eventos desportivos, é demasiado aberto e dá espaço ao Conselho de Administração da RTP para definir a sua política de cobertura ao desporto nacional. A consequência é cada vez mais óbvia: a RTP colocou o desporto nacional como uma prioridade secundária. Para além disso, o que os dirigentes das federações desportivas sabem, mas o que a maioria dos portugueses não sabe, é que a RTP, ao longo dos últimos anos, tem exigido às federações desportivas comparticipações financeiras para cobertura dos seus eventos desportivos.

Muito outros tópicos poderiam ser referidos neste texto sobre a realidade atual do sistema desportivo, mas o que todos os portugueses precisam de saber é que o principal problema do desporto nacional não é a falta de financiamento, mas antes a falta de coragem política. Venha ela!