Odeio Futebol Moderno

Sempre Presentes ou a Vida como Curva

Mais uma vez, o verdadeiro futebol não esteve nos 90 minutos regulamentares. Estava fora deles. Repararam? Debaixo de um Estádio da Luz em ovação, do centro do relvado até ao topo sul, o capitão Nicolás Otamendi levou uma coroa de flores em memória do fundador e co-fundador dos No Name Boys. E trouxe à tona as profundidades insondáveis do futebol

Ontem o Benfica empatou contra o Rio Ave, em casa. E fê-lo naquele seu futebol pastelão e previsível. Um futebol de tédio. Um futebol de regime. Vejam. Se há coisa que Mourinho veio mostrar — e até nisso é brilhante — é que a culpa não era de Lage, mas de quem o condenou ao banco do Benfica. De quem planeou, de quem definiu a política de contratações. De quem prefiro não falar hoje. Porque há momentos em que o trivial do jogo se rende ao essencial da vida e da morte.

É que, mais uma vez, o verdadeiro futebol não esteve nos 90 minutos regulamentares. Estava fora deles. Repararam? Debaixo de um Estádio em ovação, do centro do relvado até ao topo sul, o capitão Nicolás Otamendi conduzia o préstito. Levava uma coroa de flores; e tratava-se de mais do que um gesto institucional. Era um sinal de luz. Num cerimonial pagão que, por instantes, trouxe à tona as profundidades insondáveis do futebol.

O ornato fúnebre era em memória de Tino, Rita, e de Jorge Maurício, líder e fundador dos No Name Boys. O Gullit do Benfica. É que nos No Name Boys, até os nomes eram roubados. Até o nome era sem nome.

Era gente das claques. Gente que vivia para o seu clube. De um modo que é difícil de compreender. E que, no regresso de uma deslocação europeia à Croácia, morreu num desastre de viação. Assim mesmo, como morrem os mártires.

Já tenho dito: o verdadeiro futebol não é este dos agentes e do vídeo-árbitro. Mourinho confirmou no final do jogo. Ouviram? Foi lapidar: “Se isto é o novo futebol (...) eu não gosto do novo futebol.” O verdadeiro futebol, o antigo, que aprendemos a amar em ringues, em mesas de Subbuteo, e até mesmo em estádios que já não existem, esse está guardado no sacrário dos Ultras. Grupos que, apesar de tudo, têm as ideias no sítio. E amam muito. Tanto que, muitas vezes, amam ao contrário. Amar ao contrário é amar de forma absoluta. O que é complicado. Mas fascinante.

É assim desde aquele dia incerto em que se transformaram os estádios em ladeiras: contornos sagrados, perigosos, incontroláveis. A curva — palavra que vem do afrikaans “Kop”, da guerra dos Boéres e da memória dos rapazes de Liverpool que tomaram uma colina chamada “Spion Kop” — é um excesso de lugar; é o coração desordenado do futebol.

É dali que surgem os cânticos que depois as crianças repetem nos pátios das escolas. E é ali que se guardam as tarjas como se fossem estandartes de ordens militares. E, caso algum rival lhes ponha as mãos, se sofre a maior das humilhações. Como se houvesse outro jogo para lá do próprio jogo; numa cultura paralela. Como nas heresias que floresceram à sombra do cristianismo, também as claques inventaram uma ortodoxia feroz. Clandestina. Uma religião dentro da religião. Uma forma de independência

No Benfica, os No Name nasceram como separação. Uma desobediência criadora. Reivindicaram para si o topo sul da Luz. É aí que Gullit está inscrito para sempre. Como nos antigos martirológios, o seu nome e dos companheiros não se apaga.

Por isso, quando Otamendi levou a coroa de flores até ao topo, não carregava apenas memórias. Carregava gente. Carregava mortos. Levava Gullit, Rita e Tino outra vez. O estádio sabia; naquele momento era como se se ouvisse o suspiro da antiga antífona gregoriana do Ofício dos Mortos:

Media Vita in Morte Sumus,

Media Vita in Morte Sumus,

Media Vita in Morte Sumus.

“No meio da vida estamos na morte”, ou então a corruptela dos Smiths em “Sweet and tender Hooligan”, canção que nos devolve a silhueta de Gullit: bomber do avesso, boné com os dreadlocks, braços abertos a envolver a curva. Nela, Morrissey recupera a antífona, mas torce-lhe a última sílaba, corrigindo a eternidade. A morte passa a dívida: “In the midst of life we are in debt.

É isso. Gullit deu o que tinha. E o que tinha era a vida. O Benfica ficou devedor de uma lealdade que não prescreve. Que está sempre presente.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.