Odeio Futebol Moderno

Qualquer-coisa-entre-vinte-e-trinta-milhões-não-se-sabe-muito-bem-por-que-carga-de-água

O Benfica — ou o futebol português, vai dar ao mesmo — não passa de um entreposto de jogadores. Quanto a vocês não sei. A mim envergonha-me. E é preciso escolher. Ou bola. Ou bolsa. Os dois juntos não dá

Gualter Fatia

Como passou o leitor este último defeso? Esteve atento aos negócios? Aquilo a que na gíria futebolística se chama “movimentações de mercado”? Há sempre uns padrões misteriosos. Umas coisas inexplicáveis, ou de exegese reservada a uns quantos iluminados em finanças e futebol. Bolsa e bola. Duas sombras do saber que, quando se tocam, destilam uma magia negra só ao alcance de um certo tipo, muito específico, de mediador. Meio bica, meio MBA de pacotilha: tipos talhados para vender aspiradores ou apólices, a perorar num dialecto de consultor para uma plateia que se sente na obrigação de entender. E estão autorizadíssimos a dizer o que lhes apetecer: em casa, o espectador ou faz que sim com a cabeça, ou muda de canal, ou adormece. Por vezes, as três coisas ao mesmo tempo.

O que é estranho, porque — a avaliar pelas conversas de café, as caixas de comentários ou as sempre vibrantes manchetes da especialidade — o tema é consideradíssimo. O que é natural: país pobre, tristonho, conformado com a mediocridade internacional dos seus melhores. É, por isso, mais que compreensível que o adepto, essa criatura descompensada e fiel, celebre as ocorrências do import–export desportivo como se de títulos se tratassem, segurando facturas como se fossem faixas de campeão.

Na estreita medida em que transacções financeiras são capazes de me prender o interesse, estive atento. E reparei nisto. Se, no que toca a vendas, há dez anos, vigorava o “15 milhões à Benfica”, hoje, nas compras, vigora o “qualquer-coisa-entre-vinte-e-trinta-milhões-não-se-sabe-muito-bem-por-que-carga-de-água”. Não sabemos como, mas alguém decretou que os jogadores de gama média — aqueles miúdos que há dois ou três anos custavam entre 5 e 10 milhões — passaram a valer entre 20 e 30. É um tempo muito particular este, no qual aquilo que se paga por um jogador não tem qualquer correspondência com o que ele vale enquanto atleta. Este texto não é sobre o barrete óbvio que é Richard Ríos, o colombiano que veio do futebol de salão. Ou Ivanović. Ou, dentro de três ou quatro jogos, Sudakov. O ponto é outro: andam-nos a enganar. Parece que os vejo. Numa marisqueira em Matosinhos. A toalha de papel com uns números rabiscados, entre a santola e o rodovalho.

É espantoso que os jogadores extraordinários que jogavam no Benfica há uns anos — e valiam entre 20 e 30 milhões — fossem vendidos sem dó nem piedade. Gaitán, Di María, Matić e companhia. E os que os adeptos amam verdadeiramente e querem ver jogar, os que sentem o clube e sabem o que pesa o manto sagrado são varridos como se estivessem a mais. Florentino, uma espécie de Shéu dos nossos tempos? Foi-se. Hugo Félix, craque quotidiano? Foi-se. João Rego, jogador evidente? Despromovido. Henrique Araújo, que poderia ser o novo Nené caso o deixassem? Apontem no caderno: “Seguirá dentro de momentos”.

Fica a impressão de que o Benfica serve primeiro os agentes e só depois pensa em futebol. Se, nesta janela de mercado, os principais clubes portugueses queimaram centenas de milhões de euros, a fatia de comissões não é de gente séria. E a inflação não elevou o espectáculo. Outro dia, dava o Arouca–Rio Ave na televisão do café. Contei, exactamente, 28 almas nas bancadas. Não havia mais. Vinte e oito irredutíveis dispostos a sair de casa para irem ver aquilo. Há mais gente na Cinemateca. Honra lhes seja feita.

E fala-se do “Futebol Português” como se fosse uma entidade com direito a maiúscula. Como se existisse uma roseira a florir por tudo quanto é campo pelado. Mas é o avesso. A única flor que existe chama-se Cristiano Ronaldo. Uma rosa no deserto. Um fenómeno anormal que sustenta muitas folhas salariais da indústria; o resto, sim, são sombras. Um exército delas que ninguém ousa combater.

Para nós, do Benfica, têm sido décadas obtusas de comércio tão insaciável quanto estéril. Outro dia falava com o meu amigo Lautaro Vilo. Um argentino, adepto do Boca, com quem festejámos o título de 2009/2010 enquanto fugíamos da fúria dos adeptos do Vitória de Guimarães. Dizia-me: “El Benfica es medio una franquicia de ingreso al fútbol europeo para jugadores que luego van a otro equipos. Lo escuché el otro día en la radio. Mencionaban el caso de Enzo Fernández dentro de varios.” A isto alguém um dia ousou chamar “política desportiva”. Com amplo reconhecimento internacional. Sustentada por uma estrutura exemplar. Valha-nos São Béla Guttmann...

O Benfica — ou o futebol português, vai dar ao mesmo — não passa disto. Um entreposto de jogadores. Quanto a vocês não sei. A mim envergonha-me. E é preciso escolher. Ou bola. Ou bolsa. Os dois juntos não dá.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.