Coreia do Sul e tiro com arco está para os Jogos Olímpicos como a morte e os impostos estão para quem está vivo: é uma inevitabilidade. Os números são esmagadores: o país asiático tem 43 medalhas olímpicas nesta modalidade (das 288 no total), mais 10 do que os Estados Unidos, num domínio que se intensificou nos últimos anos, principalmente na segunda vida do tiro com arco nos Jogos, onde voltou nos anos 70. Em 40 medalhas de ouro disputadas na modalidade onde no meio é que está a virtude, a Coreia do Sul conquistou 20.
O domínio é particularmente evidente no lado feminino. Desde que a prova feminina por equipas chegou ao programa olímpico, precisamente na capital coreana, Seul, em 1988, que o ouro foi sempre para a Coreia do Sul e em Paris não deverá ser diferente - aliás, os Jogos nem tinham começado oficialmente e Lim Sihyeon, de 21 anos, já tinha batido o primeiro recorde mundial na competição, na qualificação. Em Sydney 2000, o pódio da prova individual feminina foi todo Coreia do Sul. Em Tóquio, há três anos, só o turco Mete Gazoz, na prova individual masculina, conseguiu imiscuir-se no que seria uma varridela de medalhas de ouro made in Coreia do Sul no tiro com arco. De resto, os coreanos foram campeões olímpicos na prova individual feminina, por equipas no masculino e feminino e na dupla mista.
Mas o que explica o sucesso do tiro com arco na Coreia do Sul? Como é que aquele batalhão de Guilhermes Tell coreanos é tão mais competente do que as restantes nações quando o assunto é acertar com uma flecha o mais próximo possível do coração de um alvo? As razões podem ser históricas, biológicas mas principalmente de método, que no final criam uma concorrência tal que se convencionou dizer que é mais difícil sair vencedor nas seletivas sul-coreanas do que nos próprios Jogos Olímpicos.
Neste segundo dia oficial de Jogos Olímpicos, a equipa feminina coreana de tiro com arco pode chegar à 10.ª medalha de ouro consecutiva no bonito cenário do Hôtel des Invalides, em pleno centro de Paris. É preciso recuar à pré-história para se conhecerem os primeiros registos de tiro com arco no país e o gakgung é conhecido como o primeiro arco tradicional com origem na Coreia, usado essencialmente para defesa do território. Durante séculos, o arco e as flechas foram parte decisiva do esforço de guerra coreano, nomeadamente na invasão do Japão, no século XVI.
Com a zona mais pacificada, o tiro com arco passou a ganhar contornos de atividade lúdica na Coreia algures no final do século XIX.
Teorias mais mirabolantes - e sem aparente sustentação científica - sobre a apetência especial dos coreanos para o tiro com arco foram alvitradas pela Reuters durante os Jogos Olímpicos de 2012. Disse então a agência que principalmente as mulheres coreanas tinham mais jeito para tarefas de motricidade fina, que requerem mais sensibilidade nos dedos, os mesmos que puxam o arco, devido às gerações e gerações de mulheres que preparavam o tradicional kimchi, prato base da cozinha coreana. Outras teorias, também elas de fazer torcer o nariz, apontam o uso dos hashi, vulgo pauzinhos, como algo que ajudou os coreanos ao longo dos séculos a aperfeiçoarem a sua destreza com as mãos.
Explicação mais sensata parece ser aquela que passa pelo o sistema e o método, numa modalidade de grande popularidade na Coreia do Sul, onde há clubes profissionais, ligas e estrelas. De acordo com a World Archery, a federação internacional de tiro com arco, o primeiro contacto de muitas crianças da Coreia do Sul com a modalidade acontece ainda na escola primária, em clubes ligados às próprias escolas. Todo o equipamento é disponibilizado aos novos atletas e a aprendizagem, mais do que no objetivo, é focada inicialmente na forma. Os treinos acontecem de segunda a sexta-feira, depois das aulas, e cada criança pode praticar cerca de três horas por dia.
A qualidade é sempre mais importante do que a quantidade: apesar do domínio da Coreia do Sul na modalidade, números da World Archery de 2023 falavam de apenas 100 clubes para crianças espalhados pelo país, onde competiam cerca de 900 pequenos arqueiros. A partir daí, o sistema começa a afunilar e só uma pequena percentagem dos que praticam na escola primária vão chegar a um clube na universidade - estima-se que 150 atletas.
“Há cerca de 30 clubes patrocinados por empresas e 30 equipas universitárias. Depois da escola secundária, os atletas podem juntar-se a uma equipa universitária e depois da universidade podem ser contratados para clubes profissionais. Desde a escola primária até à universidade recebem um treino consistente”, sublinha Kim Hyung-Tak, o lendário Coach Kim, a quem muitos atribuem o sucesso da modalidade no país, em declarações prestadas num documentário do Olympic Channel.
E daí até se chegar a uma equipa nacional que vai a uns Jogos Olímpicos, por exemplo, há constante concorrência e uma preparação que não deixa nenhum pormenor de lado. Kim Hyung-Tak ressalva também que os atletas “praticam em frente a muitas pessoas, em estádios de baseball, onde o barulho é imenso, como nos Jogos Olímpicos, para nesse momento de pressão manterem a compostura”. Antes dos Jogos do Rio 2026, a federação coreana construiu uma réplica do Sambódromo, onde se realizou a competição de tiro com arco, para aí os atletas se prepararem.
Kim Young-Sook, do Instituto de Ciências do Desporto da Coreia do Sul, especializada em psicologia do tiro com arco - sim, chega a este ponto a especialização coreana na área - refere nesse mesmo documentário do Olympic Channel que não acredita que o sucesso da Coreia do Sul no tiro com arco se explique pelo facto dos atletas terem “algo inato, que lhes está na natureza”, mas sim “por causa do esforço e pela exposição constante à competição desde tenra idade”.
E para se ter uma pequena noção da dificuldade que é entrar na equipa olímpica da Coreia do Sul, An San, tripla campeã olímpica em Tóquio, algo que não se via desde 1904, não conseguiu um lugar para a equipa de Paris, depois de tombar nas provas de seleção nacional.