Futebol nacional

Tenho Jordão dentro de mim

Este texto é uma viagem ao passado, escrito por um jornalista cabo-verdiano e benfiquista, que diz trazer um pouco da Gazela de Angola dentro do seu corpo

Raramente, muito raramente, apetece-me escrever. Hoje é um desses dias, em que me apetece escrever.

Hoje, às 8 da matina, na minha manutenção, avisava uma grande amiga que estava triste por ter desaparecido Alicia Alonso, a diva do ballet da América, que, quase cega, dançava à baila das luzes do palco, e das sombras, e dizia para explicar: “Tenho a dança dentro de mim”.

É o que tenho de dizer: tenho Rui Jordão dentro de mim.

Foi um dos mais brilhantes avançados da história do futebol português.

A Gazela de Angola, que no Europeu de França, em 1984, esticou o pescoço para bater Joel Bats (para mim, o Oblak de agora), depois de Domergue ter enganado Bento para fazer 1-0 num livre que Deus, Jesus do Flamengo e os demónios diriam que seria batido por Platini.

A Gazela de Angola – depois de um daqueles lances fabulosos que Fernando Chalana nos habituou a fazer com o pé esquerdo (apesar de o próprio dizer que é destro) – chutou e fez um golo de bandeira que levava Portugal à final do Europeu, antes de um rapaz, de seu nome Tigana, trair as aspirações lusas com um digno arranque de jogada que culminaria na desilusão. Está no Facebook.

Mas eu conto aos mais novos: não sei, nem me interessa, se Rui Jordão chutou a bola com a canela depois do cruzamento de Fernando Chalana. Sei que a bola bateu Bats, num ângulo diferente, e por momentos sentimos que Portugal – sentiu um País, diria – poderia ganhar em França à França.

Sei que Rui Jordão festejou como de costume. À Gazela de Angola – tronco inclinado para trás, pernas para cima e para baixo num movimento sincopado e vibrante, um dedo no ar. Um dedo no ar que, para o comum dos mortais, pode parecer um pedido de atenção ou chamada de atenção. Em Rui Jordão significava arte, genialidade, puro prazer, genuinidade.

Depois, ao contrário de 99 por cento dos jogadores, decidiu (e muito bem digo eu) viver outra vida, uma vida pós-bola. Perguntei, ao longo dos anos, a vários companheiros da guerra dos jornais o que era feito dele. Poucos sabiam responder, alguns diziam que se tinha afastado do futebol, que tinha decidido viver a vida, à sua maneira.

Com o dedo no ar, sublime como uma esfinge de Angola.

Jordão jogou, entre outros emblemas, no Benfica e no Sporting. Sou Benfica e cabo-verdiano. E depois? Jordão é sublime. É internacional no meu coração. Tenho a dança dele dentro de mim.