Abel Ferreira, quase 45 anos de idade, nascido em Penafiel, agora rei do Brasil. Já se sabe que não é homem de meias palavras, de paninhos quentes. Não o foi na vitória, não foi quando o Palmeiras esteve a pontos de nada ganhar este ano, depois de oito títulos conquistados nos últimos três anos. E não o voltou a ser no mais inesperado dos triunfos, ele que a 11 jornadas do fim do Brasileirão era 5.º a 14 pontos do Botafogo e foi por aí fora, desviando-se dos descalabros alheios, para se sagrar bicampeão, o único bicampeão não brasileiro do futebol do país do outro lado do longo Atlântico.
Espirituoso, cheio de imagens e referências, de casa, das novelas da juventude até, a conferência de imprensa após o empate 1-1 com o Cruzeiro, mais que suficiente para garantir um título que há um mês era matéria do campo do esotérico, foi vintage Abel.
Começou por referir que nos tempos não tão longínquos em que o Palmeiras estava a 14 pontos da frente, teve uma conversa com os jogadores, onde traçou dois objetivos. “Um era lutar pelo título e outro era lutar pelo nosso orgulho e pelo nosso carácter de uma equipa que ganha títulos de forma consistente”. Segue-se pequena interrupção para o habitual banho de gelo com que os jogadores gostam de presentear os treinadores nestes momentos de glória. Ultrapassados os arrepios das pedras de gelo a descer pelas costas, saem palavras de carinho de Abel: “Eu amo estes jogadores, essa é que é a verdade. É a minha segunda família. Eu não tenho filhos, tenho duas filhas, mas gosto destes caras”.
Logo de seguida volta o Abel algo brigão. Mesmo na vitória, lembra que um treinador tanto está em altas como logo de seguida leva o tombo. O futebol é assunto de muita emoção, pouca sensatez ou pragmatismo. Agora, Abel é excelente, mas não esquece que quando foi eliminado da Libertadores em outubro muito duvidaram: “Ganhamos e vocês [jornalistas] vão dizer que o treinador é espectacular, é inteligente, é estudioso, é mágico, tem sempre um plano. Se perdemos, é o Professor Pardal. É assim aqui, na China, em Inglaterra, é assim que funciona”. Boa referência dos quadradinhos da nossa infância - e não se ficaria por aqui o homem e treinador que admite que “não é perfeito” apesar das vitórias consecutivas lhe exigirem a perfeição: “Tenho medos, inseguranças, dúvidas”.
Não é de agora, é tema, aliás, praticamente desde a chegada de Abel ao Palmeiras. Se sai, quando sai, se quer sair, porque quer sair, se não acha que é tempo de sair. E invariavelmente o português, que treinou o SC Braga e o PAOK antes de atravessar o oceano, responde com títulos. Depois da nona taça em solo sul-americano vêm de novo todas essas perguntas, fala-se que há dinheiro das Arábias a chamar o treinador e Abel diz que “saem notícias absurdas” sobre o que ele ganha no Brasil, apesar de admitir que tem “um bom contrato”, no Allianz Parque. “Não posso não o dizer, mas quero ter dinheiro para gastar o meu dinheiro”. Tempo é coisa que não há no Brasil, onde se joga praticamente desde que soam as 12 badaladas do novo ano até ao Natal. Abel diz que “só de imaginar que dia 17 de janeiro” já terá de estar a competir de novo o faz pensar. Tem “contrato e os contratos são para cumprir”, mas precisa de parar.
“Estou cansado, são três anos seguidos e quanto mais ganhas maior é a exigência, mais te cobram. O próximo ano vai ser ainda pior, são jogos atrás de jogos”, aponta, sublinhando que uma possível saída não se fará por causa de uma conta mais recheada: “Se fosse por dinheiro tinha saído há dois meses. Treinadores que saíram daqui para outros clubes, o lugar foi-me oferecido e eu não quis”.
Agora é hora de voltar à terrinha. “O que eu preciso neste momento é de descansar. Vou fazer o que sempre fiz, vou para casa, pousar a cabeça, desfrutar da minha família que está em Penafiel à minha espera, dos meus pais que não vejo há muito tempo, dos meus amigos”. Uma decisão até pode ser tomada antes disso, admitiu Leila Pereira, presidente do Palmeiras, a única presidente mulher do Brasileirão, que ganha há dois anos seguidos. Os dois deverão falar na sexta-feira. “Uma coisa o torcedor pode ter certeza absoluta: o meu desejo é que o Abel fique por muito tempo no Palmeiras e vou fazer o possível e o impossível por isso”, sublinhou a líder do Verdão à Globo, ainda em pleno relvado do Mineirão, com jogadores, staff e dirigentes a festejarem atrás.
O exemplo e a Tieta
Voltemos a Abel. Na conferência de imprensa perguntam-lhe como se lida com jovens que mal tiveram tempo para serem adolescentes e o português saca de algo que faz bem: exemplos concretos. Neste caso, o dele próprio. “Há renúncias que se têm de fazer”, lembra, para logo a seguir lançar uma daquelas frases lapidares que figurarão na lista de “chavões míticos de Abel” quando este deixar o Brasil: “Não são só bónus, há ónus”, disse sobre os salários gordos que estes miúdos já recebem em tenra idade.
“Se me perguntares do tempo em que era jogador, eu tive colegas que desfrutaram muito mais que eu, tiveram muito mais namoradas do que eu, eu só tive uma, que foi com a qual me casei”, frisou o português, para logo a seguir atirar ao coração do brasileiro com uma referência que lhe diz muito. “Baladas [saídas à noite]? Zero baladas, ficava em casa com os meus pais a assistir à novela, a Tieta do Agreste, e às vezes a minha mãe fechava a porta porque aquilo era demasiado arrojado. E eu adorava ver a Tieta do Agreste. Eram os meus serões. Foram esses sacrifícios e essas renúncias que procuro passar aos meus jogadores”.
Esta nova geração brasileira agrada muito a Abel. Trabalha com Endrick, 17 aninhos e já peça-chave neste Palmeiras, e tem ainda Estevão, que brilhou no último Mundial sub-17. Parecem mais preparados que outros, “não só como jogadores mas como homens”. O futuro brilha para o Brasil, esteja Abel lá ou não para começar a nova temporada.