A bola vinha com o diabo no corpo. O exército de homens com o fogo na alma, com a vestimenta pintada a preto e branco, vigiava a trajetória daquele objeto caprichoso com o maior interesse. O garoto, qual malabarista de um ofício superior, balançou o corpo e ameaçou um primeiro golpe. Com o joelho – com o joelho, imagine-se – tirou um adversário do caminho, empurrando a bola para a relva. O que uns não conseguem fazer com a mão ele fez com o joelho. A bola beijou a relva duas vezes, como se estivesse a agradecer aquele momento prazeroso e singular. Num instante, o menino disparou com a canhota para o golo que, quem sabe, pode mudar a história do Campeonato Brasileiro. E do Brasil.
Falamos de Endrick Felipe Moreira de Sousa, a pérola mais cintilante do elenco do Palmeiras que esta madrugada resolveu o jogo contra o Athletico Paranaense, com uma cavadinha bonita como as coisas mais bonitas. Tem 17 anos. Contra o Botafogo, que vencia por 3-0 ao intervalo, Endrick mudou tudo. Fez dois golaços fenomenais, construiu outro e, no momento em que Tiquinho Soares tinha um penálti para fazer o 4-1, até levantou o braço para dizer a Weverton para que lado se deveria mandar. Acertou. É um predestinado.
Com 15 anos foi capa da mítica e gloriosa revista “Placar”. Questionava-se até onde podia ir. Elogiava-se já o poderio físico. Contava-se até que apenas Gabriel Veron, hoje no FC Porto, tinha sido mais rápido do que ele nos testes na equipa principal do verdão. Mesmo sendo um adolescente imberbe e com o ponto de interrogação a fazer fintas ao sol no horizonte, já tinha na altura um assessor de imprensa, um preparador físico particular e um nutricionista, que o ajudou a baixar de 10% de massa gorda para 7,9%. A determinação do menino, orientado por uma estrutura familiar como poucos têm, era glorificada.
Aos 10 anos foi para o Palmeiras, depois de Corinthians e São Paulo não fazerem o suficiente para ficar com ele, pois a família não tinha possibilidades de ficar na capital paulista. Segundo aquela reportagem da “Placar”, de fevereiro de 2022, conta-se que com 14 anos já jogava pelos sub-17. Com 15, passou para os sub-20. Ia engolindo assim, sem mais nem menos, desafios que lhe colocavam diante das botas. Em 2021, por exemplo, jogou em três categorias. Foi campeão pelos sub-15 e sub-20 e vice-campeão nos sub-17. Ou seja, omnipresente, dando bombons de alegria para os pais dos diferentes escalões do futebol de base. Na formação do Palmeiras, o canhoto fez 171 golos em 175 jogos até ali. Assombroso.
Quando sugeriram que Abel Ferreira deveria levá-lo ao Mundial de Clubes, o treinador português deu troco e sugeriu antes uma viagem à Disney, como quem pede para não se apressar nada. Esta época já vimos mais Endrick. Um rapaz que parece ter mais aderência que os outros no relvado, tal é a facilidade para mudar de velocidade e direção. Tem coisas de heróis brasileiros precoces de tempos idos. Contra o Botafogo disse até aos companheiros para lhe darem a bola. Ele diz que aparece nos grandes jogos. Dezassete anos.
Depois de uma temporada com altos e baixos, em que foi muitíssimo utilizado no início e depois pouquíssimo (rendimento baixou, imprensa cobrou), o Palmeiras conta agora com Endrick para esta reta final que promete ser talvez a melhor edição do Brasileirão dos pontos corridos. O craque que já assinou contrato pelo Real Madrid vai liderar o assalto à liderança fogosa.
“O Endrick é uma jóia”, confessa Paulo Vinícius Coelho, ou PVC, um jornalista brasileiro. “Tem só 17 anos e cobra-se dele a maturidade de um jogador de 25 anos. Zico não jogava pelo Flamengo aos 17. Eusébio não jogava pelo Benfica, nem Cristiano Ronaldo pelo Sporting. Não aos 17, como titular. Endrick vai ser um grande jogador. Mas precisa de tempo, como todos os grandes.”
A maturidade observada no discurso e, mais importante, no que faz em campo é magnífica. Resiste ao impulso de querer ser o herói em todas as jogadas. Vai fazendo o que está certo, o que é melhor para a equipa, até que entra em ebulição e inventa algo. É especial.
“O Endrick é apontado como uma jóia desde muito cedo”, contextualiza Douglas Ceconello, outro jornalista brasileiro. “Sempre houve muita expectativa sobre ele, pois ele tem características semelhantes às dos maiores atacantes brasileiros. Como é muito jovem, a sua presença na equipa titular não é constante, o que vem gerando grandes cobranças sobre o técnico Abel Ferreira, especialmente nas últimas semanas. Endrick tem momentos iluminados sempre que entra, mas nesta última partida contra o Botafogo, quando o Palmeiras virou para 4-3, teve o seu desempenho mais fulminante desde que subiu para os profissionais.”
Thiago Ferri, mais um homem das redacções, também acompanha a carreira do prodígio de perto. “Ele chama à atenção pelas arrancadas e imposição física”, resume. “É um jogador de muito potencial. Além da qualidade inegável e boa condição física, está muito bem cercado de pessoas que cuidam da sua carreira. Tem desenvolvido o estudo das línguas espanhola e inglesa. É focado. Tem tudo para ser um dos líderes da próxima geração de jogadores do Brasil.”
Quando ganhamos um tempinho a ver Endrick a jogar futebol, um ofício que aparenta fazer desde que saiu da barriga da mãe, dá a sensação de estarmos a testemunhar História. Como se pudéssemos ir lá atrás e ver o início de Pelé, Zico, Ronaldo Fenómeno ou Ronaldinho. Não se está a comparar o nível ou a fazer futurologia, mas antes a imaginar, para satisfazer a líbido futebolistíca, a sensação que teria sido acompanhar o surgimento desses gigantes.
Clarissa Barcala é uma utilizadora do Twitter, ou X atualmente, que está muitíssimo dentro do debate entre futebol posicional e ataque funcional, uma ideologia que ganhou o derradeiro fôlego com a vitória do Fluminense de Fernando Diniz na final da Libertadores. Perguntámos-lhe o que pensava sobre este rapaz que aparentemente tem tudo para marcar a próxima década, quem sabe entalado entre Rodrygo e Vinícius, no Real Madrid e na seleção.
“É difícil usar outro termo para descrever Endrick que não ‘o novo Romário’. Mais pelo estilo. O Romário mais fresco na memória dos torcedores, especialmente dos brasileiros, é o Romário rei da grande área, artilheiro do final de carreira. Por isso, muitos acabam esquecendo do primeiro Romário, aquele jovem que impressionou o Brasil e o mundo, primeiro no Vasco, depois no PSV Eindhoven. Endrick se parece muito com aquele jogador em todos os sentidos. É baixo, troncudo e explosivo, um físico que pouco combina, pelo menos à primeira vista, com a posição de centroavante.”
Pausa para interiorizar que deve ser gostoso mesmo ser brasileiro e poder viver fenómenos populares assim.
“Tem um primeiro toque muito refinado, um drible muito curto e uma arrancada imparável”, continua Barcala. “Muda de direção com uma facilidade impressionante e com uma inventividade absurda. A bola gruda no pé e ele emenda sequências assustadoras de drible em uma única arrancada. Isso pode descrever tanto o primeiro Romário que surgiu ao mundo quanto Endrick, a jóia do Palmeiras, já prometida ao Real Madrid. Endrick é o melhor 9, o melhor ponta e o melhor meia do Palmeiras. Nenhum jogador do time – talvez do Brasil – tem a capacidade que Endrick tem de transformar uma jogada morta em uma chance de golo, seja por sua finalização letal de um ou dois toques, seja por suas arrancadas recheadas de dribles com a bola colada no pé, seja por sua enorme capacidade de passe curto e longo ou seja por sua agilidade em identificar espaços e dar sequência ao ‘toco e vou’.”
Clarissa descreve um jogador inquieto, alguém que gosta de estar constantemente em contacto com a bola, recebendo-a até perto dos médios. Ou seja, não é um camisa 9 clássico, muito longe disso. Está no lado oposto ao que é Erling Haaland, exemplifica esta analista e estudiosa do jogo. “Curiosamente, é esse o perfil de 9 que Abel Ferreira procura. Como (quase) todo bom português, Abel é um treinador mourinhista. Ele busca superioridade em campo a partir dos espaços, mas os explora não a partir dos passes curtos e da imposição técnica, como Guardiola, mas sim a partir da imposição física, com passes longos e duelos de corpo. Abel gostaria de um 9 à Haaland, pois ele é exatamente o tipo de jogador que acha vantagens na linha defensiva adversária por imposição física, sendo alvo de cruzamentos e bolas longas. Haaland tem 1,94m, Endrick tem 1,72m. A incoerência já se desenha aí. (...) [Mas] Abel deu o braço a torcer recentemente e, mesmo sem mudar seu estilo, encaixou Endrick na equipa. O impacto foi imediato. Se o Palmeiras ainda tem perspectivas de tirar a diferença para o Botafogo no Brasileirão, é por causa de Endrick.”
O Palmeiras, com os mesmos pontos do que o Botafogo, que tem menos dois jogos, tem ainda alguns problemas graúdos para resolver. Pela frente terá ainda Flamengo, Internacional, Fortaleza, América Mineiro, Fluminense e Cruzeiro. Não é coisa pouca, num campeonato que está ao rubro, no céu e no inferno. Espera-se que Endrick seja o contador de histórias fabulosas, o autor de obras de ficção científica. E escrevendo tudo com o pé esquerdo abençoado.
“Endrick é uma força da natureza”, descreve Bruno Rodrigues, mais um profissional das palavras que tentam explicar momentos como este. “Resgatou o Palmeiras dos escombros na virada sobre o Botafogo como se tivesse 36 anos e uma carreira inteira nas costas, com passagem exitosa pelo Real Madrid e quatro Copas do Mundo disputadas. Mas tem só 17 anos, não pode nem dirigir no Brasil. Já é capaz, porém, de jogos como o que vimos no Estádio Nilton Santos.”
Foi avassalador.
“Falar desse jovem é uma maravilha”, celebra Danilo Lavieri, mais um jornalista que vive em São Paulo, perto da obra de Endrick de Sousa. “O cara joga muito. Ele, com 16 anos, já era impressionante. O físico era muito forte. Era um negócio bem impressionante, dava-lhe muita vantagem. Tem arrancadas que, exagero porque é jovem, mas numa comparação, diria que misturam o que era Romário e Ronaldo Fenómeno”, descreve.
E continua: “A cabeça dele é boa. Não se deslumbra, não gosta de festa, claro que gosta de uma graça, no TikTok, mas não tem desse absurdo como era Neymar”. Lavieri recorda que um dos jogos contra o Boca Juniors, na semifinal da Libertadores, marcou o regresso à equipa titular de Endrick. E assinala sobretudo que, no Brasil, onde reina a impaciência, é difícil ser-se jovem. “Com 17 anos querem que resolva uma equipa inteira”, desabafa sobre o “garoto humilde” e “centrado”. E arrisca: “Dá para imaginá-lo na Copa do Mundo em 2026. É um jovem muito talentoso, explosivo e com faro de golo”.
O número 9 do Palmeiras nasceu em 21 de julho de 2006, em Taguatinga, no Distrito Federal. Nunca viu o Brasil ser campeão do mundo. O futebol dá muitas voltas, mas quase dá para imaginar os deuses deste jogo, lá em cima ou lá em baixo, ou onde for, a jogarem às cartas e a rirem às gargalhadas com o que prepararam para este garoto. Será um prazer, Endrick.