Rezam os relatos que todos os dias, de há uns tempos para cá, que Fernando Diniz vai perguntando aos jogadores do Fluminense: “Que dia é hoje?”. Eles só tinham de responder uma coisa: “4 de novembro”. A data da final da Libertadores, na agenda assinalado como o dia da glória eterna.
Depois da tentativa falhada em 2008, diante da LDU Quito, o Flu venceu finalmente a sua final da Libertadores contra o gigante Boca Juniors, que igualou o Peñarol com 14 finais e que falhou imitar os sete triunfos do Independiente, quatro dos quais conquistados por Ricardo Bochini, o ídolo de Diego Armando Maradona. O neto do mago, filho de Kun Aguero, exibiu-se esta noite nas bancadas do Maracanã com uma t-shirt com a fotografia do avô Maradona. Hoje, D10S não foi suficiente para travar o futebol da eventual equipa mais brasileira do Brasil.
Quando a Tribuna Expresso entrevistou Fernando Diniz, em setembro de 2022, perguntou-lhe por que razão se sentia insultado quando lhe chamavam moderno. A resposta foi daquelas que se assemelham a uma receção de Ganso, ou a uma finalização de Cano ou John Kennedy, ou a uma correria deslumbrante de Jhon Arias, ou à omnipresença de André.
“No futebol, que acaba por ser um reflexo da minha vida, eu tento reproduzir as coisas que marcaram a minha infância. Tento colocar em prática o que me marcou quando era criança”, começou por dizer, em resposta à primeira pergunta da entrevista. “Na minha conceção de viver a vida, eu prefiro que a vida seja mais arte do que ciência, aquilo que é artístico marca para sempre, emociona as pessoas. A ciência está sempre a renovar-se, a gente tem de fazer uso da ciência mas, entre os usos da ciência e da arte, eu gosto mais da arte do que da ciência.” Dinizismo.
E os jogadores convenceram-se disso. Foram campeões cariocas, vão encantando nos relvados do Brasileiro, com aquele atentando contra o jogo posicional, ignorando as ditaduras posicionais dos tempos modernos, as regras apertadas, a régua e esquadro. Ali, perante o escudo tricolor, reinam a tabela, o movimento, o passe, a criatividade, a inventividade e a coragem. A história inteira do Brasil mais brasileiro. E o respeito do treinador perante o homem que joga futebol. John Kennedy, o herói desta final, foi mais um caso daqueles em que Diniz segurou um jovem que o futebol quase mastigou e deitou fora.
A primeira parte desta final da Libertadores, no Rio de Janeiro, foi um tratado de bom futebol. E de domínio e controlo. Talvez os que tinham viajado de Buenos Aires estivessem deslumbrados com o que viam, ou com o que sabiam que ia acontecer, ou então, sábios gigantes como são mudamente, esperavam no seu canto, haveria sempre uma oportunidade para massacrar a baliza de Fábio, um guarda-redes que, aos 43 anos, cumpria o 100.º jogo na Libertadores.
Germán Cano, um inevitável argentino que tem umas quantas gavetas no coração que pertencem ao Boca Juniors, marcou o primeiro golo da noite ainda na primeira parte. O golo, o 13.º no torneio (fez mais do que o Boca), foi construído pelos dois extremos, ou pontas, Arias e Keno. Estavam do mesmo lado, no corredor direito, imagine-se. O Dinizismo convida a este delírio da mobilidade. Marcelo, numa noite desinspirada, também tem essa liberdade, fazendo lembrar o que Júnior fazia naquele mágico Brasil de 1982, a maior inspiração de Fernando Diniz, o atual selecionador brasileiro.
Na segunda parte, com o orgulho ferido, os argentinos, liderados por Edinson Cavani e a pérola Valentín Barco, regressaram ao relvado com uma versão melhorada. Esta gente é mais ou menos como o Real Madrid, até pode parecer estar morto, mas nunca está, e qualquer centímetro é uma boa desculpa para ameaçar algo. Foi isso que aconteceu, mesmo que o Fluminense tenha baixado o ritmo e as ameaças à frente, quando Luis Advíncula, ex-Vitória de Setúbal, chutou de fora da área, com o pé esquerdo, e deixou tudo empatado no Maraca. Abrandar contra o Boca é pedir chuva. Esta rapaziada, fardada a lembrar a bandeira da Suécia, tem uma herança futebolística gloriosa.
O Boca, que não vence a prova desde 2007 (perdeu nas finais de 2012 e 2018), ficou mais confortável e mais confortável, cresceu e mostrou o grandíssimo clube que é. Os brasileiros, ainda que tenham observado à grandeza do futebol de André, já não pareciam capazes de voltar a amansar a bola nas suas botas, dando-lhe beijos na testa e pedindo mais um pouco de amor. E o prolongamento chegou. A preocupação idem, pois a possibilidade de penáltis apenas sorria, sabe-se lá porquê mas era a sensação planetária, aos xeneizes.
Os treinadores, Diniz e Jorge Almirón, já tinham mexido bastante nas equipas, que iam apresentado alguma fadiga. A tensão podia comer-se às colheradas. John Kennedy, um menino de 21 anos, já estava em campo. O feroz e virtuoso 9 foi exatamente isso. Bola em Keno, quase quase em cima da grande área. O ponta tocou de cabeça para o centro e Kennedy disparou uma bala para a baliza de Sergio Romero, num exercício estético digno de ser erguido pelo Cristo Redentor. Num desvario justificado, e aconselhado para quem ama o futebol, o menino Kennedy foi festejar com o povo, com as gentes do Rio de Janeiro, do Fluminense. A consequência confunde-se com a barbárie: segundo amarelo e expulsão. Ficou incrédulo. Ganso e Marcelo, já substituídos, consolaram-no mansamente.
Incompreensivelmente, depois de mais um sururu, Frank Fabra deu um tapa na cara de Nino, o capitão do Fluminense, e o VAR detetou-o uma expulsão, equilibrando as contas e anulando o que se adivinhava ser uma pressão bostera avassaladora. E assim serenou o Fluminense, que até atirou uma bola ao ferro na caminhada para os 120'.
Pela primeira vez na história do Fluminense, o clube das Laranjeiras, religião de gente como Chico Buarque e Nelson Rodrigues, é campeão da América do Sul. Depois de ser rotulado de pé frio, de lírico e romântico, Fernando Diniz e o seu futebol, no qual os futebolistas confiam cegamente e até denunciam em surdina sentir um prazer quase pornográfico, foram finalmente recompensados pela bolinha mais bela.
Os deuses deste jogo já haviam decretado a sua preferência, depois da semifinal contra o Internacional, foi tal a felicidade dos cariocas. Os futebolistas do Boca, perante mais uma derrota dolorosa, foram uns senhores numa hora difícil, dando o exemplo certo para os seus adeptos.
Felipe Melo, a fera de 40 anos que já havia chorado durante o hino, chorou baba e ranho à frente do microfone na flash interview. Explicou que prometeu aos familiares que seria campeão da América do Sul (pela terceira vez). Marcelo, depois de cinco Champions no bolso no maior clube da história, estava também emocionado como um garoto. Multiplicavam-se os abraços, os beijos e sorrisos. Diniz, engolido pelos adeptos na fronteira com a bancada, ouvia “obrigado”, “obrigado”.