Ciclismo

Acima do Angliru, só o sonho português: João Almeida vence na mítica subida da Vuelta após exibição histórica

Pela 13.ª vez, um corredor nacional triunfou numa tirada da prova espanhola. O caldense assumiu as despesas da ascensão à temível montanha asturiana, a mais difícil do mundo segundo as suas palavras, no final, e só não conseguiu descolar Jonas Vingegaard, o grande adversário na disputa pela vermelha. Na classificação geral, João Almeida segue em segundo, a 46 segundos do dinamarquês

Pool

A rua que vai dar à casa de João Almeida em A-dos-Francos é muito empinada, é uma daquelas ruas empedradas e em subida típicas de aldeias portuguesas. Foi naquela zona que João começou a andar de bicicleta, habituando-se à inclinação, ao sofrimento, a conhecer os sinais que o corpo vai dando.

Em 2025, Almeida é corredor consolidado, um dos melhores do mundo, chega aos 27 anos num ponto de maturidade física, psicológica e competitiva. Talvez pegando nas lembranças das rampas de A-dos-Francos, o português foi até um lugar mítico do ciclismo deixar um espetáculo para a memória, uma exibição para os livros de história da modalidade.

O Angliru começa a ser temível pela sonoridade, tem nome de vilão de história de banda-desenhada, e torna-se martírio para as pernas. Sobe, sobe, sobe, em caminhos para cabras, não para pessoas, que até a caminhar têm dificuldades. Em cima da bicicleta, Almeida assumiu a frente do grupo dos favoritos na Vuelta nos últimos 6 quilómetros e não mais de lá saiu.

Jai Hindley, só o vencedor do Giro 2022, e Kuss, só o melhor gregário de montanha desta geração, descolaram a 4,5 quilómetros da meta. Ficaram João Almeida e Jonas Vingegaard, que é só um bicampeão do Tour, o único homem que ousa colocar em causa o estatuto de Tadej Pogačar, o rei-sol.

João Almeida pedalou ao seu estilo, ritmo constante, sentado, fita no nariz. Olhar matador, possuído, mirada de Patrícia Sampaio. O dinamarquês, de óculos na face, escondia o jogo, disfarçava o sofrimento que é impossível não sentir. O português, mais expressivo, chegou a esboçar um sorriso ao ver o enorme apoio português.

A dupla foi junta para a Cueña Les Cabres, a rampa mais dura, o local onde se chega a 23% de inclinação, é zona para animais de montanha, não para pessoas de camisolas justas ao corpo e dando ao pedal. João forçou, Jonas aguentou. No final, já em descida, Almeida manteve a liderança que nunca largou, agarrando-a como um predador. Etapa conquistada, tempo das bonificações conseguido, distância para Vingegaard reduzida.

Digamo-lo sem medos: é possível um português vencer uma grande volta, algo que jamais sucedeu, um feito que nem Joaquim Agostinho obteve. Será muito difícil, há uma lenda do outro lado, há 46 segundos para anular. Mas quem sobe assim só pode sonhar, porque o sonho ganha toques realistas.

Dario Belingheri

Fugindo do que muitas vezes se vê na Vuelta, a etapa não foi monopuerto, não tinha as rampas até ao céu do Angliru como única dificuldade. Nos 202,7 quilómetros que arrancaram de Cabezón de la Sal houve muita dureza asturiana, com as ascensões à Mozqueta (6,3 quilómetros a 8,4% de pendente média) e ao Cordal (5,5 quilómetros a 8,8%) a levarem os favoritos para a “subida que nunca termina” — palavras de João Almeida, à partida — já com muito desgaste acumulado.  

As paisagens verdejantes das Astúrias, com os seus pueblos dispersos pelas montanhas, foram palco de uma numerosa fuga, na qual rodou Ivo Oliveira, em dia de 29.º aniversário. Matxin, patrão da UAE, prometeu que, a partir de agora, acabavam as distrações na equipa, que a prioridade seria proteger João Almeida, que concentraria as atenções do multipolar conjunto. No entanto, Juan Ayuso voltou a não querer saber muito da corrida quando esta não o tinha como protagonista, descolando rapidamente do grupo principal e prosseguindo uma Vuelta em que parece ter alergia a Almeida, já que ou anda à frente do português, ou anda atrás, nunca próximo.

A três quilómetros do começo da subida ao Angliru as manifestações pró-Palestina voltaram a entrar de rompante na Vuelta, com um pequeno grupo a bloquear a passagem de Nicolas Vinokurov (filho do mítico cazaque que ganhou esta competição em 2006), Jefferson Cepeda e Bob Jungels, os resistentes da fuga. A tirada chegaria ao monstro dos 12,4 quilómetros a 9,8% de pendente média com Ivo Oliveira, em grande esforço, a trabalhar em prol de João Almeida, seguindo-se Jay Vine e Großschartner no trabalho coletivo em favor do ilustre cidadão de A-dos-Francos que, hoje sim, a UAE realizou.

Dario Belingheri

A equipa lançou a ofensiva consistente do segundo classificado. Quando o caldense fez a curva para a esquerda que leva ao muro mais colossal do Angliru, Vingegaard parecia ir ceder, era só mais um bocadinho, mas o campeão do Tour 2022 e 2023 não largou a roda de quem procurava roubar-lhe a camisola vermelha.

Foi a 13.ª vez que um português ganhou na Vuelta, sendo Almeida o nono corredor nacional a fazê-lo. É a 10.ª vitória do homem da Emirates em 2025.

"Ainda não acredito", comentou João à chegada, após uma "vitória especial" na que considera ser "a subida mais dura do mundo". Sobre a disputa por chegar ao lugar mais alto do pódio final em Madrid, o português diz que "o Jonas parece fenomenal", pelo que será "uma tarefa árdua". "Mas não desistiremos", assegura.

Perto da rua íngreme da casa de João em A-dos-Francos foi erguido o monumento em homenagem ao ilustre filho da terra. Um dia, quando nos lembrarmos da razão para lá estar aquela estátua, será impossível não falar do Angliru 2025.