Quem acompanha corridas de ciclismo já se habituou ao desfilar de símbolos alusivos à causa palestiniana. É comum ver bandeiras na beira da estrada ou pinturas, no asfalto, com frases como "Fim ao genocídio". Se as referências à situação em Gaza não são exclusivas da modalidade das bicicletas, a presença da Israel-Premier Tech, equipa que compete nas principais corridas do mundo, torna o ciclismo num palco preferencial para as reivindicações.
Houve protestos organizados na passada edição do Giro d'Italia, em Roma, e também na derradeira tirada da Volta a Portugal. Em Belém, algumas pessoas concentraram-se em pontos do contrarrelógio final com bandeiras da Palestina, fazendo-se ouvir aquando da passagem dos corredores da equipa secundária da Israel, que estiveram em grande na prova.
Não obstante o tema não ser novo, na Vuelta 2025 o tom e a forma das ações subiram de patamar. Em Figueres, no contrarrelógio coletivo, um grupo pró-Palestina foi para o meio da estrada para tentar bloquear a passagem da equipa israelita; em Olot, na jornada seguinte, outra organização tentou evitar que o pelotão partisse rumo a Andorra; em Bilbao, a tensão escalou ainda mais.
Num País Basco que, historicamente, é muito vocal no apoio à causa palestiniana, o percurso da 11.ª etapa foi marcada por uma invasão de bandeiras vermelhas, brancas e verdes. Mas os manifestantes não se limitaram a ficar do lado de lá do asfalto. Na primeira passagem pela chegada, um grupo de pessoas tentou passar pelo cordão policial, levando a que uma barreira de segurança cedesse. Antes do segundo e definitivo cruzar da meta, os espetadores passaram mesmo para o caminho que deveria estar reservado para os corredores, obstruindo o percurso.
Como consequência, não estavam reunidas as "condições de segurança" para disputar a vitória na tirada, anunciou a organização. Assim, os tempos foram tomados a três quilómetros da meta, não havendo vencedor da jornada.
Perante o ruidoso protesto, a comitiva da Israel-Premier Tech recebeu ordens para entrar rapidamente no seu autocarro, sendo escoltada até lá pela polícia. Minutos depois da conclusão da tirada, a equipa saiu da zona em redor do estádio de San Mamés, onde estava a meta.
De academia a casa do tetracampeão do Tour
A equipa que agora se chama Israel-Premier Tech começou em 2015. O conjunto chamava-se Israel Cycling Academy e foi financiado por Sylvan Adams, empresário nascido no Canadá com nacionalidade israelita, que continua a ser o patrão do projeto. Presidente do Congresso Judaico Mundial, defende a "criação de um estado judeu na Palestina" e, já durante a Vuelta, disse que Israel está "a perder a batalha da comunicação" contra o Hamas. "Temos de ripostar contra a campanha de milhares de milhões de dólares lançadas contra nós pelo Catar", comentou, alegando haver "uma guerra de imagem" que é uma "ameaça existencial" para Israel.
A equipa, que em 2015 tinha seis corredores israelitas com menos de 25 anos, foi ganhando força e internacionalizando-se. Passou da terceira para a segunda divisão em 2017 e, em 2020, ganhou estatuto World Tour, o escalão máximo. Viria a ser relegada novamente para a categoria de prata em 2023, mas é uma das formações mais poderosas desse patamar competitivo, participando nas três maiores corridas por etapas.
Um marco deste crescimento foi a contratação, em 2021, de Chris Froome, tetracampeão do Tour. Chegado à Israel com 35 anos, o britânico, que há dias teve um grave acidente, poucos ou nenhuns resultados de relevo tem obtido, não correndo uma grande volta desde 2022.
Se em 2015 a Israel Cycling Academy era composta por 14 corredores, dos quais meia dúzia eram jovens israelitas, o panorama, uma década volvida, é muito diferente. Do plantel de 32 ciclistas, há só três israelitas e, desses, somente Nadav Raisberg tem sido convocado para as principais competições, encontrando-se na presente Vuelta.
A passagem de responsabilidades
É evidente o incómodo no pelotão com a presença da Israel. Os ciclistas têm de lidar com protestos cada vez mais imprevisíveis, com algumas tentativas de invadir a estrada. "Os mais vulneráveis são os ciclistas. Muita gente não tem consciência da velocidade a que vamos nem o perigo que se corre. Isto tem de resolver-se já", apelou Carlos Verona, espanhol da Lidl-Trek. "Temos passado medo. Está cada vez pior, parece um motim numa prisão. Barreiras que caem, bandeiras que quase nos atingem... É preciso que se tomem medidas", disse Joan Bou, da Caja Rural.
Da parte da organização da Vuelta, a mensagem é clara: a bola está do lado da equipa israelita e da União Ciclista Internacional (UCI), entidade máxima da modalidade. Kike García, diretor técnico da corrida, comentou que a UCI tem de "decidir" se está "do lado de uma prova internacional como a Vuelta ou do lado de uma equipa". García considera "só haver uma solução", a qual "não pode ser tomada" pela organização, referindo-se à saída da Israel-Premier Tech da Vuelta, algo que só pode ser feito ou por imposição da UCI, ou por retirada da própria equipa. O responsável apela a que a Israel compreenda que "estando aqui, não facilita a segurança dos demais".
A escalada da situação em Gaza, com bombardeamentos feitos por Israel há quase dois anos e, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, pelo menos 63 mil mortes de palestinianos, levou a que a rotina da Israel-Premier Tech se fosse habituando a rígidos protocolos de segurança. Há sempre coordenação com as forças de segurança locais, a maioria dos membros do staff não utiliza símbolos da equipa e parte da sua frota automóvel deixou de ter "Israel" escrito nos veículos.
Aquando da invasão russa à Ucrânia, a equipa Gazprom foi vetada pela UCI. Num passado mais distante, e por razões de doping, a Saunier Duval foi expulsa do Tour de France 2008. No entanto, a entidade máxima da modalidade não parece inclinar-se para uma opção dessas. Em comunicado após o sucedido em Bilbao e apesar das decisões passadas, sublinhou a sua "neutralidade política", indicando que o ciclismo tem a "missão de unir as pessoas" e pedindo "solidariedade e apoio" para com as equipas.
Neste afastar de responsabilidades, a Israel-Premier Tech pede que se zele pela "segurança do pelotão". Em comunicado, a equipa garante estar "comprometida com a Vuelta", colocando de parte uma saída voluntária, já que "qualquer outra decisão seria um precedente perigoso".
Em declarações depois da 11.ª etapa, Óscar Guerrero, um dos dirigentes da equipa, disse que "não é agradável" ser "constantemente chamado 'assassino' ou 'filho da puta'". O espanhol garantiu "compreender" os protestos, mas sem "agredir os corredores".
"Chegam-nos ameaças de morte, temos medo. Seria irresponsável que eu expressasse a minha opinião sobre o que sucede em Gaza. Tenho a minha forma de pensar, mas este não é o momento. Não estou contente com o que vejo e há, também, muita gente na equipa que não está contente com o que sucede em Gaza", confessou Guerrero, que nega que o conjunto exista para limpar a imagem de Israel. "É meramente uma equipa desportiva", frisou o responsável, que também assegurou que não haverá um abandono da prova.