Estar vinte quilómetros e cerca de cem metros sempre a escalar uma subida asfaltada cujo cume mora a 1.993 metros é, há muito anos, uma árdua tradição da Volta a Portugal. No verão, quando o tórrido calor aquece a Serra da Estrela, os ciclistas ainda tinham caras descontraídas e licras fechadas quando passaram pela Covilhã. Assim que a paisagem natural virou bonita ao olho, costume do ciclismo, o inferno para as pernas começou.
A derradeira ascensão rumo à Torre fez vítimas, já com o arvoredo e os pedregulhos que pincelam da Beira que pincelam o cenário, Maurício Moreira, o vencedor de 2022, ficou para trás, mas ainda aguentou mais um pouco do que os portugueses carregadores das camisolas: João Matias (Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua) cedeu com a sua amarela, João Macedo (Credibom-LA Aluminios-Marcos Car) e a sua ‘às bolinhas’, que identifica o líder da classificação montanhosa, também.
Até perto de 10 quilómetros da meta, a dianteira era puxada por um grupo onde se destacavam espanhóis, responsáveis pela fixação do ritmo. A partir dessa distância, outro grupo se formou de quatro ciclistas - Txomin Juaristi, Delio Fernández e Jesús del Pino vindo do outro lado da fronteira, acompanhados pelo suíço Colin Stüssi. Pouco depois de a estrada dizer olá à Lagoa Comprida e aplanar um pouco, o português Luís Gomes acelerou para os tentar alcançar.
Nos últimos quilómetros, com as caras sôfregas, dentes a ranger, as posturas corcundas de dor e corpos a aparentarem dor, só dor, foi o mais velho dos domadores do sofrimento com pedais nos pés a superar o que os ciclistas treinam para suportar. Os 38 anos de Delio Fernández (APHotels and Resorts - Tavira) fizeram-no descolar da companhia e estava sozinho, uma ilha em forma de bicicleta, quando a paisagem já era só rocha, pedra e aridez montanhosa.
A tortuosa meta esperava-o, ele com os dentes a rangerem de sacrifício, a escapar-se com tempo de sobra para ficar com a camisola amarela ao fim de cinco horas, 21 minutos e 59 segundos. Aos poucos, os despojos da energia que o espanhol tinha nas pernas foram chegando, com polvilhos portugueses: o melhor na etapa foi Henrique Casimiro, em 5.º, seguido de António Carvalho, em 7.º, e Frederico Figueiredo, que chegou em 9.º.
O alto impiedoso da Torre, no cocuruto da Serra da Estrela, a fazer estragos em mais uma Volta a Portugal que ficou sem líder português. Se for precisa mais alguma prova de como o cume continental do país mói e remói corpos, veja-se a cara quase desprovida de vida de Mauricio Moreira, o uruguaio que pareceu quase desmaiar quando acabou a etapa - teve de receber assistência médica numa ambulância.