Os precipitados anteciparam um massacre. Mas Coco Gauff, uma parede com pés rápidos e com um coração dourado, tragou o veneno em silêncio. Recalibrou estratégias e sentimentos. Defendeu-se, passou a atacar, fez a feroz rival duvidar e, aos 19 anos, conquistou o primeiro major da carreira. “Obrigado a quem não acreditou em mim”, diria depois da partida com Aryna Sabalenka.
A forasteira entrou no court e, perante uma multidão inteira que prometia apenas soprar nas costas da teen prodígio que jogava em casa, desatou a bater na bola como se tivesse um martelo e a uivar a cada pancada. A bola amarela, sem tempo para sentimentalismos, viajava com uma sofreguidão arrebatadora.
As pernas de Aryna Sabalenka, futura número 1 do WTA, e Coco Gauff também revelavam nos arquivos histórias diferentes. A bielorrussa esteve menos cerca de três horas no court do que a norte-americana na travessia até à final no Arthur Ashe, um enorme e mítico estádio que leva o nome de um homem singular que, depois de uma carta de Martin Luther King, passou a ser campeão no court e no coração de oprimidos. Fez esta noite, 9 de setembro, 55 anos que Ashe, um então tenente do exército que pediu licença para competir no US Open, conquistou o torneio. Ele era ainda amador.
O martelo de Sabalenka, com um sem número de pancadas inside-out que mereciam um espacinho nos melhores museus de Nova Iorque, continuou e continuou e continuou. Coco Gauff, um fenómeno que apareceu aos 15 anos, corria alucinadamente, com uma dignidade avassaladora. O Arthur Ashe soprava-lhe coragem ao ouvido. E ela ia resistindo. Ou tentava. Ou prometia resistir. A entrada da rival, talvez escaldada por aquele 0-6 no primeiro set contra Madison Keys na semifinal, foi brutal, um termo que realmente pertence à brutalidade, uma gesta salpicada por serviços acima dos 180 quilómetros por hora.
O tecto da arena estava fechado ou semi fechado e isso fazia ecoar ou dava músculo às pancadas na bola, o que tornava o ténis de Aryna ainda mais atroz e ameaçador. O tigre que mora num dos braços vivia-lhe também na garganta. Mas perdia o pio a cada dupla falta – três dos quatro primeiros pontos que perdeu no seu serviço foram duplas faltas. É um fantasma de outros tempos.
A norte-americana não conseguia meter bolas longas para dificultar o canhão que Sabalenka tem no braço direito. Por isso, sem surpresas, Gauff, que mais parecia um limpa pára-brisas sumptuoso, quebrou e a bielorrussa fechou o primeiro set em 39 minutos: 6-2.
Mas a solidez do jogo de Sabalenka, explosivo e sábio, foi derretendo perante a compostura e paciência que vivia do outro lado do court. Gauff, apesar de ter entrado com uma dupla falta, afinou a raquete, deu corpo à paixão pelo jogo e inaugurou outros desafios à adversária, que ia errando muitíssimo. Sabalenka, perdida de amor pelas linhas, começou a meter bolas fora com frequência. Antes, os tiros alvejavam as fronteiras permitidas pelo regulamento. Agora, não. E Gauff cresceu, sobretudo depois de um passing shot de esquerda a duas mãos. Foi maravilhoso. A alegada falta de frescura de Gauff era, afinal, mero rumor. E vê-la celebrar ao ritmo do rugido do Arthur Ashe era refrescante e belo.
Num abrir e piscar de olhos, a mulher mais apoiada por aquela colossal arena chegou ao 4-1, obrigando agora a bielorrussa, a futura rainha do circuito, a correr e a defender. Gauff ficou mais agressiva, ainda que tenha investido em bolas mais pingadas para atrofiar o martelo alheio. Decidiu ser protagonista, não duvidou, ao contrário da rival.
Em entrevista ao “El País”, publicada este sábado, um dos seus treinadores, Pere Riba, explicou que a jovem tenista “está a encontrar a sua identidade” e que agora lê melhor o jogo. O catalão disse ainda que têm trabalhado bastante o trabalho de pés de Coco Gauff, uma atleta “super competitiva, muito trabalhadora e muito boa pessoa”. À vista está também uma evolução impecável na sua direita e no serviço.
Depois de uma correria imensa de Gauff, fazendo até lembrar Carlos Alcaraz, um atleta em quem ela coloca os olhos, a tenista da Flórida meteu um lob que levou ao delírio o Arthur Ashe… que rapidamente ficou silenciado quando o troco, um lob carregado de spin de Sabalenka, ganhou o ponto. Que momento. A bielorrussa deixou cair a raquete e usou uma mão para celebrar. Apesar de tudo, a maré já sentenciara o fado deste segundo set: 6-3 para Gauff, a futura número 1 do ranking de pares, lado a lado com Jessica Pegula.
O terceiro set arrancou com um break de Coco Gauff, mais fiável do que a concorrência. Na bancada, a mãe da tenista foi quase tão efusiva quanto Spike Lee. Com o 2-0 para a senhora da casa, chegou o sorriso de Sabalenka que nada traz de bom. E queixou-se para a sua box, mostrou-se impotente, trocou a raquete, tal como fizera no tal 0-6 contra Keys, o único set que perdeu até à final. A certa altura, Gauff ganhou 14 dos anteriores 20 pontos. A luz estava do lado da feroz resistente, que passou a atacar mais vezes. Erros e mais erros da visitante desaguaram noutro break: 3-0 para Coco Gauff. Cheirava a história, essa armadilha tão perigosa… e saborosa, não?
A potência e o fogo de Sabalenka, que aos 25 anos já não cai mentalmente como antes caía, ficaram emaranhados na gélida teia sublimemente construída por Gauff, alguém que talvez tenha a capacidade de devolver ao céu cada pingo de chuva. E ela foi amealhando quase todos os pontos, pelo menos os mais importantes, e assim chegámos ao matchpoint. Quando a bola tocou pela última vez no outro lado do court, Coco Gauff largou a raquete e deixou-se cair no chão. As lágrimas lavaram-lhe o rosto. A futura número 3 do WTA, a melhor tenista norte-americana e finalista de Roland-Garros em 2022, foi até à tribuna abraçar os pais, amigos e treinadores. O povo, uma moldura feliz e inesquecível, tratava de adorar a jovem tenista, que de regresso à cadeira, à espera da cerimónia, pegou no telefone e celebrou com alguém que estava certamente noutra latitude. A atleta transformou-se na mais jovem jogadora a conquistar o torneio desde Serena Williams, em 1999, quando tinha apenas 17 anos.
“Significa tanto para mim, estou um pouco em choque neste momento”, disse na ressaca da vitória, depois das angustiantes respostas de uma admirável Sabalenka, que venceu o Open da Austrália, no primeiro major do ano, e que chegou às semifinais de Wimbledon e Roland-Garros. “Foi a primeira vez que vi o meu pai a chorar!”, revelou a jovem tenista. “Obrigada a quem não acreditou em mim. Achavam que estavam a meter água no meu fogo, mas só meteram gasolina.” Quando recebeu o cheque de três milhões de dólares, Gauff, a primeira norte-americana a ganhar o torneio desde Sloane Stephens em 2017, agradeceu a Billie Jean King por uma luta que ganhou em 1973, quando garantiu que as mulheres recebiam o mesmo que os homens no US Open.
Que 55 anos depois da vitória de Arthur Ashe uma afro-americana, também ela comprometida com várias causas e um discurso sensível aos problemas da sociedade, conquiste o US Open, é só mais um ato de justiça poética do desporto.