Gastão Elias anda nisto há anos, já terá passado por tudo e mais alguma coisa em courts enquanto profissional de ténis e por isso há que acreditar em quem anda lá dentro. Mal Carlos Alcaraz, no início do 3.º set, colocou as mãos nas coxas, com o corpo convulsionado em várias dores, cãibras por todo o lado, e baixou a cabeça, o tenista da Lourinhã, esta sexta-feira a fazer de comentador, mas que em tempos foi número 57 do ranking mundial, sentenciou o jogo que mais expectativas criou nesta temporada do desporto da bolinha de feltro.
Acabou.
E, figurativamente falando, acabou ali o encontro, a meia-final de Roland-Garros (mas final antecipada no coração do mundo), pouco depois do espanhol igualar a contenda em um set para cada lado. Mostrando ser feito da mesma fibra que outro seu compatriota, também ele brioso, Alcaraz seguiu em campo, uma sombra daquele jogador para quem não há bolas impossíveis, com os movimentos presos de dores, os músculos das pernas a negarem-se a grandes cavalgadas. E negando-nos um jogo que se preparava para entrar na história, a avaliar pelo equilíbrio e competitividade dos dois primeiros sets, nem sempre bem jogados, mas sempre tensamente disputados. No final do 2.º set, o encontro já levava mais de duas horas. Aquele golpe de teatro tirou-nos se calhar mais duas, três ou quatro do ténis mais brutal (não no sentido cool, minha gente, mesmo da exigência física) e intenso de que nos podemos lembrar.
O jogo (enquanto houve)
Nos registos ficará o resultado: 6-3, 5-7, 6-1 e 6-1 para Djokovic, 34.ª final num torneio do Grand Slam para o sérvio, que ficará à espera de Zverev ou de Ruud, finalista no ano passado.
Até o corpo de Alcaraz lhe pregar uma terrível rasteira, o encontro foi uma tensa batalha, um interminável duelo entre dois homens que não sabem o que é abdicar de uma jogada. No primeiro set, Djokovic aproveitou, essencialmente, uma inabitual displicência de Alcaraz, com alguns erros inesperados e muita dificuldade em converter os vários pontos de break que teve - Djokovic converteu logo à primeira.
O sérvio, como já é habitual, encontrou o seu jogo mais sólido no momento que mais interessava, depois de uma temporada de terra batida sofrível. Já Alcaraz, entregou mais pontos do que seria de esperar, a câmara focou-o inquieto, algo perdido sem conseguir arranjar soluções para a parede que consegue ser Djokovic, atirando desabafos em castelhano para o seu treinador, Juan Carlos Ferrero, que ali venceu há precisamente 20 anos, ele que costuma ser tão composto em campo.
Talvez se tenha aí notado o peso das 45 meias-finais em torneios do Grand Slam de Novak Djokovic, que aos 36 anos parece tão ou mais preparado para estes jogos de nervos. Para Alcaraz, era apenas a segunda. Com condições climatéricas complicadas, vento forte, rajadas chatas a influenciar o percurso da bola, o sérvio esteve sempre mais controlado.
No 2.º set, Alcaraz viu-se embalado por um ponto extraordinário, de costas para o campo, a emular um tal de Roger Federer, que também fez uns quantos assim e em Roland-Garros. Naquelas listas dos pontos mais espectaculares da história do ténis, este vai aparecer muitas vezes. Com aparentes problemas no antebraço direito, Djokovic pediu assistência e logo a seguir foi quebrado pelo espanhol, numa altura em que o encontro atingiu níveis pornográficos de ténis, com os dois jogadores na plenitude da sua classe, da variedade de jogo, do seu estofo físico.
Djokovic devolveu então o break com uma esquerda ao longo da linha, com o peso do mundo em si, e depois salvou três set points no seu serviço. Não fecharia o espanhol em 6-4, fecharia em 7-5, já com o corpo a dar de si, confessaria mais tarde.
E a partir daí deixou de haver jogo, com o desligamento do corpo de Alcaraz. Tendo a nobreza de não desistir, sabia-se que daí para a frente seria um proverbial passeio para Djokovic. Assim foi, mas Carlitos esteve lá para assistir ao seu próprio desmoronar. É preciso ter estômago, cabeza, corazón y huevos - o mantra do seu avô não serve só para as vitórias.
Aprenderá muito com este jogo o miúdo murciano - marciano também digo eu - se quiser dele tirar lições importantes. Ninguém duvida que Alcaraz está bem preparado fisicamente, mas um jogo a cinco sets com Novak Djokovic num torneio do Grand Slam é uma enormidade física e mental. É duro, é tenso. E Alcaraz tem 20 anos. O seu corpo absorveu todo esse esforço inicial e traiu-o quando parecia estar finalmente por cima da meia-final, finalmente a reencontrar aquele sorriso permanente que quase nunca lhe achámos na cara no primeiro parcial. Este foi apenas o segundo encontro entre ambos os jogadores, fieis depositários do título de símbolos de uma geração. Se tivermos sorte, haverá ainda mais alguns, e em igualdade de circunstâncias.
Já para o sérvio, parece inevitável afastar-se de Rafael Nadal no topo da lista dos maiores vencedores da história em torneios do Grand Slam. O título 23 parece uma inevitabilidade, apesar de lhe faltar a final. Apresentando-se como nesta meia-final, dificilmente alguém o enganará.