Seja como for, ele está destinado a ser o protagonista. Como se os deuses da bola, ou qualquer entidade divina que escreva as narrativas que vemos nos relvados, lhe tivessem reservado, sempre, o papel principal.
Cristiano Ronaldo, o íman de recordes, entrou no Islândia - Portugal pisando nova marca histórica, a de primeiro futebolista masculino a conseguir 200 internacionalizações. Fazer o inédito é, para ele, rotina, um guião já visto cheio de páginas novas. Máximo goleador da história do futebol de seleções, primeiro a disputar 200 jogos, duas décadas a fundir-se com o percurso da seleção.
Em Reiquiavique, depois da homenagem que antecedeu o jogo, a partida do avançado estava longe de condizer com o estrondo da proeza. Errático, impreciso, longe do golo — zero remates enquadrados com a baliza islandesa nos primeiros 89 minutos — e até precipitado, tendo sido apanhado quatro vezes em fora de jogo. Viu um amarelo por simulação e, à medida que o apito final se aproximava, a homenagem a Cristiano Ronaldo parecia, na verdade, uma anti-homenagem: valorizar o goleador não marcando, sublinhar as virtudes do voraz predador não mordendo nem assustando a presa. Nos 89' inaugurais, Portugal só rematou no alvo duas vezes, ambas nos primeiros minutos e na sequência de cantos.
Mas, seja como for, ele está destinado a ser o protagonista. E só precisa de um momento para o ser. Lançamento na área, desmarcação de Gonçalo Inácio, amortecimento e finalização para o golo. Alguns instantes de incerteza para verificar a posição do defesa do Sporting, dúvidas esclarecidas pelo VAR, 1-0 para Portugal.
O 123.º golo de Cristiano Ronaldo foi o único do triunfo visitante na Islândia, o marco principal do 200.º desafio do madeirense pela seleção principal. Num duelo cinzento, fez-se história através de caminhos repetidos, feitos e voltados a fazer ao longo de duas décadas.
Debaixo do sol quase eterno desta altura do ano em Reiquiavique, o jogo sonolento e pouco vibrante de Portugal foi próprio de uma partida de fim de época, de um dia que conclui 2022/23 quando 2023/24 já está ao virar da esquina. Um duelo a 20 de junho soa a verão de grande fase final, mas não, aqui estamos em eternas temporadas de 11 meses, encaixando cada vez mais jogos num calendário que não estica, castigando corpo e mente dos protagonistas.
Com quatro mexidas face ao onze que bateu a Bósnia, Pepe estreou-se sob o comando de Roberto Martínez, fiel aos três centrais. O veterano do FC Porto e Rúben Dias, em remates de cabeça após cantos de Bruno Fernandes, foram os autores dos dois únicos tiros enquadrados com a baliza adversária até ao golo de Ronaldo ao cair do pano.
Portugal perdeu-se na etapa inaugural entre uma circulação de bola engasgada, um ataque pouco dinâmico e prestações individuais pouco inspiradas. Os islandeses tentavam ameaçar no jogo aéreo, fazendo de lançamentos de linha lateral momentos para juntar gente perto de Diogo Costa, uma cimeira nos céus na terra do gelo e do fogo. Aos 24’, os locais dispuseram mesmo da melhor ocasião do primeiro tempo, mas Pálsson, em excelente posição no coração da área, atirou por cima.
Com escassos momentos de perigo perto das balizas, o 0-0 ao intervalo era natural. Para a segunda parte, Martínez fez alguns ajustes, com Bernardo Silva estando mais no meio e João Cancelo com mais liberdade, também, para fletir para dentro, dando o corredor esquerdo ao futebol-gazela de Rafael Leão. O agitar da estrutura pouco abalou a defesa local.
A meio da década passada, a Islândia foi caso de estudo no futebol internacional, exemplo de competitividade numa terra inóspita que não chega aos 400.000 habitantes. Depois do milagre, vieram as desilusões e os maus resultados, com apenas um triunfo — frente ao Liechtenstein — nos derradeiros 10 compromissos. Na qualificação para o Mundial 2022, ficaram mesmo atrás de Roménia e Arménia.
Ainda assim, os homens do norte venderam cara a derrota e chegaram a assustar Diogo Costa. Aos 72', um remate de Willumsson roçou o poste esquerdo de Diogo Costa. Passados nove minutos, o lateral direito seria expulso, levando a Islândia para a parte final em inferioridade numérica.
Nessa derradeira fase da partida, Roberto Martínez já colocara em campo Gonçalo Inácio, Guerreiro, Otávio e Vitinha. Aquele que mais impacto teve foi o central do Sporting, que acrescentou saída de bola e arrojo para entrar no último terço.
Aos 89', lá veio o lance que permitiu que Roberto Martínez continue totalmente vitorioso no comando técnico nacional, com quatro vitórias em quatro jogos, 14 golos marcados e nenhum sofrido. Conectando o século XXI do futebol português, Gonçalo Inácio, nascido em 2001, serviu Cristiano Ronaldo, que parece que está sempre lá, sempre protagonista, sempre herói.
O conto foi o mais repetido nestes 20 anos, 200 internacionalizações e 123 festejos. Mas não por isso deixa de ser histórico e dificilmente igualável por quem venha atrás. Na Islândia, num jogo que ilustra a absurda feitura deste calendário internacional, Portugal não brilhou. Tampouco Cristiano Ronaldo teve a sua exibição mais inspirada. Mas, seja como for, ele é o protagonista, a história em movimento, o perseguidor de recordes que diz que estes é que o perseguem.