A pequena Valentina chegou-se ao pé de Tiquinho Soares, cravou-se às pernas do futebolista e com a voz mais terna alguma vez ouvida perguntou:
– Tiquinho, você promete que nunca vai sair do Botafogo?
– Prometo, prometo.
O jogador riu, com demasiado descaso, tocando a cabeça da criança, como se aquela não fosse uma promessa do tamanho de todos os oceanos do planeta. O que gera Tiquinho no Rio de Janeiro é fenomenal. Basta fazer uma busca no X, o antigo Twitter. As lágrimas de um menino a precipitarem-se sobre o pequeno e inocente rosto depois do golaço do avançado ao Fluminense, no Maracanã. O homem que já não é garoto a choramingar porque a namorada conseguiu um autógrafo de Soares na sua camisola. A multidão a engolir o jogador e o seu automóvel à saída do centro de treinos. “Ai, ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora, o dia já vem raiando meu bem, Tiquinho Soares é foda”, cantavam, com uma bebedeira de alegria honesta, apagando os problemas do mundo. Essa música surgiu depois de o artilheiro do Brasileiro resolver no Morumbi, contra o São Paulo.
O tal fenómeno que transpira da aura de Tiquinho, um avançado que passou por Nacional da Madeira, Vitória Sport Clube e FC Porto, é mensurável. Segundo o “Globo Esporte”, a imagem do futebolista já rendeu mais de 560 mil euros em 2023, ou 3.000.000 reais, ao Botafogo, que lançou em julho uma linha de produtos especial só de Tiquinho. Das lojas do clube saíram cerca de 50 mil peças, entre copos, camisolas e casacos. O rosto do camisa 9 está em todos esses objetos. Um goleador no Brasil tem o estatuto de água. É a salvação do povo.
O que Tiquinho Soares tem feito é tão especial que muita gente pede o jogador na seleção, agora treinada, talvez interinamente, por Fernando Diniz. Júnior, um dos magos que atuou no Espanha-82, é uma dessas vozes. “Qual é o melhor artilheiro do Campeonato Brasileiro? Porque não?”, questionou no programa “Seleção” da Globo. “É o problema da idade? Tem de botar os melhores. Não está a jogar melhor que esses caras? Bota na arena! Falo por experiência própria, porque sofri com esse preconceito duas vezes, em 1990 e 1994, com a questão da idade não tive oportunidade de disputar outra Copa.”
Júnior, que outrora teve um bigode fabuloso, continuou: “Este é o cara que precisa de ter uma oportunidade na seleção. Encaixa perfeitamente no que o Diniz quer: sabe jogar com o homem de frente, sai da área, tem habilidade, tem uma série de virtudes que podem encaixar. Nada contra quem está lá, os caras são feras. Mas uma oportunidade ele está merecendo, principalmente neste momento de experiências.”
Com ou sem seleção, Tiquinho é um semideus no Nilton Santos, a casa do Botafogo com nome de lenda imensa. Num daqueles acasos, ou então naquelas coisas que se forçam porque amor é amor, há quem coloque a fotografia de Tiquinho Soares ao lado de Nilton Santos e as semelhanças chegam a ser óbvias. Numa troca de mensagens, Hanna Santos, a neta de Nilton Santos, explicou porque o futebolista é tão adorado pelas gentes do fogo.
“O Tiquinho tem algumas características importantes para cair no gosto da torcida: carisma, habilidade, humildade, técnica, liderança. Ele transmite segurança quando está em campo, não é apenas um atacante, ele dá assistência para outros jogadores, marca, joga literalmente nas 11 posições se o deixarem”, comenta, gargalhando, ou seja, acrescentando um “hehehe”. A troca de mensagens com este jornal aconteceu no WhatsApp. E continuou: “As crianças têm uma identificação enorme com ele também. É um jogador completo dentro e fora dos campos. E parece que pode até vir a se aposentar no Botafogo, e aí se tornaria mesmo um ídolo para a torcida…”
Em 1995, a última vez que o Botafogo foi campeão brasileiro, Túlio Maravilha, o tal artilheiro que fez um golo com um truque de calcanhar que correu o mundo, foi o melhor marcador dessa liga, que ainda não era por pontos corridos. Túlio fez 23 golos. Tiquinho Soares leva 15 (faltam 12 jogos), alcançando assim o recorde de Dodô em campeonatos com pontos corridos. A cifra aumenta para 27 golos quando juntamos todos os 43 jogos.
Tiquinho terá sido também o trigger para a saída de Bruno Lage do clube. Talvez tenha sido a gota de água. A julgar pelas palavras de Júnior Santos, um extremo potente e habilidoso, foi mesmo assim: “Bruno Lage dividiu as águas quando deixou Soares no banco do Botafogo”. E, depois do jogo contra o Goiás, depois de derrotas e mais derrotas, colocando em xeque o espaçado batimento do coração dos adeptos alvinegros, foi despedido por John Textor.
“O grupo está fechado, está todo o mundo unido”, comentou Tiquinho Soares, a seguir à vitória com o Fluminense, no Maracanã, uma semana depois. “Infelizmente, com o outro treinador a gente não conseguiu o que ele queria, mas como falei aqui: temos grandes jogadores, pode ser qualquer treinador que venha, o mais importante sempre vai ser o Botafogo.”
O avançado, agora com 32 anos, chegou ao Nilton Santos com Luís Castro, depois de pouco mais de uma temporada na Grécia, dentro da camisola do Olympiacos. A certa altura, o treinador português confessou: “Fiquei admirado quando percebi que o Brasil não conhecia o Tiquinho. Muita gente duvidou dele, um jogador que passou pelo FC Porto, um jogador de Liga dos Campeões. E ele já dá uma resposta a todos, responde em campo e não com palavras. Um jogador de futebol é o que ele faz em campo e não o que diz nas redes sociais. A verdade está no campo”.
Soares sempre foi generoso, fazia as corridas que um avançado tinha de fazer, mordia os adversários, mas tecnicamente parece ter dado um salto especial, que lhe permite uma versão zlataniana, o que transporta a equipa inteira para cima dos seus ombros. Chega a soar a figura paternal. Não é só os golos, é como recebe a bola em momentos de aperto e aguenta a pressão, resiste ao choque, à fome alheia.
Há muitos anos, Manuel Machado vivia mais um dia normal quando Bruno Patacas, o ex-futebolista e então diretor desportivo do Nacional, o chamou para ver uns vídeos de um jogador. O treinador gostou do perfil. Diante dos olhos exibia-se um jogador com um perfil muito atlético e combativo. “Tinha alguns pormenores que indiciavam o que mais à frente se veio a confirmar”, admite Manuel Machado à Tribuna Expresso. O jogo de cabeça também era satisfatório. Era voluntarioso.
Apesar de todos atributos, pecava na cultura de jogo, revela o treinador. “Ao mesmo tempo, tinha uma grande permeabilidade à aprendizagem, era um jogador muito disponível para trabalhar. Era bastante jovem. Tem bom caráter, dentro de campo era ‘quero, quero, quero’.” Machado lembra alguém com um bom e simples discurso, salpicado com humor. A certa altura, reproduz um diálogo entre ambos nos tempos da Choupana.
– Então Tiquinho, quando é que aparece um golo?
– Gol, professor? Gol é uma marca do Volkswagen. Só vendem no Brasil, aqui não vendem…
“Tinha assim algumas respostas, com algum humor e tal. Era um bom fulano de balneário, com piada. Foi interessante trabalhar com ele”, conclui Manuel Machado, um homem que perdeu o rasto de Tiquinho quando o futebolista foi para a China, em 2020. Porém, salienta, tudo o que ouve que vem do Brasil é “muito abonatório”.
Tiquinho, como Túlio outrora, vai aguentando numa inspiração eterna a ilusão e o medo do povo alvinegro inteiro. Faltam 12 jornadas para o clube, onde em tempos idos magos da bola como Garrincha e Didi encantaram, celebrar o título nacional. Escapa desde 1995. Com nove pontos de avanço para o Red Bull Bragantino de Pedro Caixinha, a festa pode ser antecipada. As derrotas na era de Lage taparam a estrela solitária como se fossem nuvens pesadas e tristes. Mas o sonho tornou-se gigante. A promessa de serem felizes também. Para tudo ser verdade, para o Rio de Janeiro ser uma garrinchada, dependem de um homem, seu Tiquinho Soares. Ou Tiquinho Maravilha.