O futebol brasileiro tem tanto de inusitado como de maravilhoso. Só ali, depois de um título importante que escapava a uma mui importante equipa, é que um dos jogadores mais famosos do plantel toca um samba no relvado; ou outro futebolista agradece, em direto na TV, ao rival por ter dispensado o treinador que agora era o seu; ou outro jogador, depois da festa no Morumbi com Kaká na bancada, que toca à campainha da casa de Denilson, deixando o canhoto que era uma fera arrepiado e feliz da vida.
Depois de uma final a dois jogos, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o tricolor garantiu 11 anos depois a conquista de um grande troféu. “Foi-se a tristeza, veio a alegria”, já cantava Ismael Silva. Parece que é assim desde que Dorival Júnior pegou na equipa. Tem fama de homem sereno, respeitador e entendedor de jogadores, que não vai nas cantigas dos europeus de prenderem futebolistas a posições (é um dos debates do momento por lá: jogo posicional vs. ataque funcional), abrindo a janela para a mais bela das brisas que vive em cada tabela ou movimento alegadamente caótico ou cheio de liberdade. Dorival é muito brasileiro… e por isso desconfiaram dele no Brasil.
Quando Paulo Sousa teve o mais triste dos fados no gigante do Maracanã, Marcos Braz e a entourage do mengão contactaram Dorival, agora com 61 anos. O treinador que então estava no Ceará aceitou mais uma vez treinar o clube. Acelerando a história, acabou o ano a vencer a Libertadores e a Copa do Brasil, a mesma que ganhou no domingo à noite, a terceira da carreira, ficando apenas a uma do recordista Luiz Felipe Scolari. Dorival ofereceu as primeiras Copas a São Paulo e ao Santos em 2010, na altura com rapaziada como Neymar, Ganso e Robinho.
Era expectável que o homem que desatou os nós e que colocou os jogadores a falarem o mesmo idioma, mais brasileiro pois claro, e com sucesso, seria convidado a continuar. Mas não foi assim. Vítor Pereira, o treinador do Corinthians que tinha perdido a final da Copa contra o Flamengo de Dorival, foi o escolhido para aproximar a equipa do que tinha sido com Jorge Jesus, aparentemente é o que está no norte da bússola dos cartolas.
“O Flamengo não o devia ter demitido”, diz-nos um jornalista brasileiro numa breve troca de mensagens. “O Dorival é um treinador que sempre foi muito bom. O que aconteceu com ele é que assumia muitos clubes ruins no começo de carreira. Ia pegando buchas e buchas, salvando equipas da despromoção, com elencos ruins… Agora está pegando em equipas que podem ser campeãs. Eu gosto muito dele, sempre gentleman. Quando ganha e quando perde.”
É essa, de facto, a imagem que passa Dorival, uma espécie de Ancelotti brasileiro para darmos aqui um toque de proximidade. Quando lhe perguntaram, após a vitória na Copa, se tinha tido um gostinho especial por ter sido contra o Flamengo, foi um cavalheiro. Preferiu agradecer aos diretores e aos adeptos do ex-clube. A forma como cumprimentou, um a um, cada futebolista que orientou há não muito tempo demonstra o nível humano e também a ligação que ficou.
“Joguei contra os meus ex-comandados, só fico um pouco chateado porque ganhámos aquelas competições e diziam que era um arroz e feijão, e que o arroz com feijão qualquer um faria igual com o elenco do Flamengo”, disse, com alguma mágoa, numa alusão à expressão que sugere facilidade ou previsibilidade ou sempre o mesmo, repetição, um modo de operar aborrecido até. Resumindo, é uma conotação que roça o insulto.
“Um mês depois, por incrível que pareça, quando a mesma equipa não alcançava os resultados da disputa do Mundial, era uma equipa que precisava de reforços… uma equipa que tinha sido campeã da Copa do Brasil e da Libertadores”, refletiu, ainda defendendo os seus rapazes, desta vez destroçados, principalmente Bruno Henrique, chorando como uma criança. “Estranhei as atitudes, colocações de muitos que diziam que 30 dias antes era o melhor elenco da América e que ganharia. Foi muito estranho tudo o que aconteceu. Tentando uma desqualificação do trabalho desenvolvido.”
Elegante, porém sem deixar de ter a dignidade imaculada para não se sentir pisado, assim colocou os pontos nos is. Afinal, além de tudo o que conquistou no passado recente, tem no currículo sete estaduais, sendo o terceiro maior triunfador da história do futebol brasileiro. Não é brincadeira. “Ele é muito bom, especialmente como gestor, mas também gosta do bom futebol”, comenta noutra janela do WhatsApp um profissional de comunicação que anda nos escritórios dos maiores clubes de São Paulo e que lida com a fina nata do futebol brasileiro. Não é por acaso que Dorival Júnior foi um dos nomes equacionados para substituto de Tite na seleção, o treinador que agora parece ser o favorito para treinar o Flamengo.
A vitória do São Paulo na noite que passou permitiu ao clube, para além de regar os cofres com mais de 16 milhões de euros, tornar-se na primeira instituição paulista a ganhar tudo. Ou seja, Paulista, Brasileiro, Copa do Brasil, Sul-Americana, Libertadores, Recopa e Mundial de Clubes. Os tempos idos e gloriosos de Telê Santana já lá vão, mas não deixa de haver aqui e ali um ponto de conexão com treinadores que são olhados de lado e até conotados de pé frio, como Dorival e principalmente Fernando Diniz, o atual treinador do Fluminense e selecionador brasileiro interino.
É certo que o 14.º lugar no Brasileirão, mesmo com reforços como Lucas Moura e James Rodríguez, deixa algo a desejar, mas não podemos deixar de referir que o treinador chegou apenas em abril, substituindo Rogério Ceni. O tempo e a segurança no cargo poderão dar muitas alegrias ao São Paulo, que tocou no céu no início dos anos 90 com Santana, o arquiteto do mágico Brasil de 1982.
Olhando para o outro lado, o da angústia, o trajeto de Jorge Sampaoli é uma tragédia em movimento, que até já vinha sendo cantarolada desde os tempos de Vítor Pereira, logo, logo desde o início. Foi assim um 2023 terrível, pelas exibições, pela falta de conexão entre jogadores e técnico, que talvez peçam um jogo mais fluído, funcional e com menos regras, e obviamente pela ausência de alegrias. A incerteza na posição de Gabriel Barbosa foi talvez a mais desafiante e errante decisão, mais ainda com a suposta incompatibilização com Pedro, que com Dorival foi feliz, tão feliz como um menino inocente.
E os socos no estômago dos adeptos que habitam o Maracanã cheio de lembranças sucederam-se. Começou com a derrota na Supercopa contra o Palmeiras de Abel Ferreira. Depois, a derrota surpreendente na semifinal do Mundial de Clubes contra o Al-Hilal. A seguir, foi a derrota na Recopa Sul-Americana. Seguiu-se a dolorosa queda na final do Carioca contra o deslumbrante Fluminense de Diniz. O céu desabou na Libertadores, nos oitavos de final, contra um supostamente anónimo e débil Olímpia. E, agora, a final da Copa do Brasil contra o senhor Dorival, que ainda teve a gentileza de recitar a receita para o sucesso.
“Para atingir o topo no futebol tem que haver comprometimento e acima de tudo dignidade para poder encontrar grandes resultados”, declarou na ressaca da importante vitória no Morumbi, o estádio onde em tempos Raí, Bellini, Muller, França ou Careca ofereciam a cada domingo uma bebedeira de alegria ao povo tricolor.
“Poucos sabem o que foi feito no São Paulo do trabalho, de poder resgatar um grupo que estava muito magoado naquele instante, mas que entendeu o recado e passou a acreditar naquilo que foi proposto e com a ajuda substancial da torcida que voltou a ser apaixonada”, declarou Dorival. “Conseguimos o momento que talvez seja inigualável nos últimos anos de história deste clube. Isso não tem preço, só tenho a agradecer àqueles que confiaram no meu trabalho.” E eles, seguramente, agradecem a quem não confiou no trabalho dele.
Domingo foi dia de lamber feridas. E de arroz com feijão.