Futebol internacional

Entre o fogo e os milhões da Arábia: finalmente amado pelos adeptos do Botafogo, Luís Castro estuda proposta para treinar Cristiano Ronaldo

O treinador português chegou com John Textor, após promoção do clube ao Brasileirão, e teve uma primeira temporada difícil que até acabou satisfatoriamente. O arranque desta época foi trágico com a eliminação precoce no Carioca, mas as 10 vitórias em 12 jornadas mudaram tudo numa equipa que apresenta um futebol competitivo e que tem em Tiquinho Soares o grande líder. E os adeptos, que outrora exigiram a saída de Castro, temem agora perdê-lo para o Al-Nassr, a equipa de Cristiano Ronaldo na Arábia Saudita

Wagner Meier

Os clichés são a costura do futebol. Existem as bestas, os bestiais, o céu, o inferno, o inevitável abismo, a lenda que renasce das próprias cinzas, o génio que vira burro, o burro que é burro e o burro que se transforma por milagre no mais sábio dos tigres brancos, uma teoria magicada à pressa que talvez atente contra o que chegou a dizer em tempos Nelson Rodrigues, o irrepetível escritor e dramaturgo – “invejo a burrice porque é eterna”. O futebol é uma fábula itinerante. É um circo. E quem vê de fora decide o papel de cada um.

O futebol brasileiro talvez seja o lugar do mundo onde essa costura é mais testada. Os pontos estalam como o crepitar da escaldante lenha. Abrem-se fendas. Mais tarde, em alguns casos e num exercício do mais hediondo arrependimento, juntam-se as margens e tenta-se que seja tudo como antes. O Botafogo é, nesta altura, o maior dos exemplos desta roda viva. Quando John Textor bateu com as pesadas notas na mesa do clube gigante do Rio de Janeiro, os adeptos, acabadinhos de ver a sua equipa ser promovida ao Brasileirão, encheram-se de esperança. Seguiu-se o recrutamento de Luís Castro e fiéis adjuntos. O Estádio Nilton Santos nutriu-se de multidões que esperavam viver algo que Garrincha, Didi e companhia haviam feito noutras décadas. A expectativa foi desmedida.

As coisas não começaram especialmente bem. Houve uma sacudidela positiva e depois mais uma hecatombe de resultados. As bancadas do estádio com nome da lenda das lendas começaram a ficar mais espaçosas. As dúvidas começaram. A equipa não jogava bem. Defensivamente, também havia fissuras. Os soldados do Twitter iniciaram a revolta. Alguns comentadores de podcasts, especializados no Botafogo, também começaram a torcer o nariz ao treinador português. Depois da eliminação na Copa do Brasil, somando a oitava derrota em 11 jogos (às quais se seguiriam mais duas em três jornadas), Castro ouviu vaias e foi questionado pelos jornalistas.

“Estou há muitos anos no futebol e estou habituado a tudo. Portanto, nada me perturba e se os adeptos se manifestam de forma negativa têm razões para se manifestarem”, disse então na conferência de imprensa, onde tantas e tantas vezes defendeu os seus jogadores e a dignidade do trabalho diário. “Não estamos à espera de ser elogiados quando perdemos, ainda mais numa eliminatória na qual perdemos os dois jogos. É normal manifestarem-se. Antes de vir para o Brasil eu sabia para onde vinha, sei qual é a cultura do futebol brasileiro, que não é igual à de outros países”, comentou, numa alusão às tais costuras, ao circo, às fábulas. “Estou totalmente preparado para essa cultura, que é de vaias quando perdemos e de elogios quando ganhamos.”

Sobre a pressão que sentia como profissional de futebol naquele momento delicado, Castro recorreu à estratégia mourinhesca da “bird flu”, embora dando um toque pessoal, humanizando o treinador. “Sabe quando é que tive pressão?”, perguntou ao repórter naquele dia de julho de 2022, um mês depois da invasão de vários adeptos ao centro de treinos do clube carioca: “Quando tive de amparar os meus pais com cancro no hospital. Ali tive uma pressão louca. Essa é a pressão da minha vida. Pressão de perder um jogo? Pelo amor de Deus…”

Wagner Meier

Jornalistas e comentadores falam com a autoridade habitual, olvidando-se sempre da parte da saúde mental de quem vê o seu cargo na forca. No Brasil não é raro verem-se adeptos a chegar à fala com os treinadores e os futebolistas. Há muitos insultos. E há também dicas para os treinadores, o que remete quase para o absurdo. “Burro” é um dos desabafos habituais. Castro, que tantas vezes ouviu e leu palavras que o queriam longe dali, abordou o tema também: “A crítica é bem-vinda, outra coisa é dizerem que os treinadores são uns burros”. Lá está, a burrice eterna.

O apoio de John Textor, na imprensa e sobretudo nos bastidores do clube, era convicto. E o rendimento melhorou significativamente na reta final e o Botafogo terminou o Brasileirão em 11.º lugar, apenas a dois pontos do oitavo lugar que dá acesso à pré-eliminatória da Libertadores. Já o sexto lugar, o acesso direto à Champions da América, ficou apenas a cinco pontos. O todo-poderoso Flamengo fez apenas mais nove pontos do que o rival da cidade, ficando muito longe do campeão Palmeiras de Abel Ferreira. Conclusão: Luís Castro e a sua comissão técnica sobreviveram e começariam mais uma temporada.

A cambalhota no destino

O Carioca, o estadual de início de temporada, foi um desastre para o Botafogo. Apesar de já contar com o novo sintético que surpreendentemente agrada tanto aos jogadores, o rendimento foi muito abaixo do esperado. A equipa era praticamente outra relativamente aos tempos em que começou esta jornada no Brasil, o que requer mais tempo, já se sabe. Mas tempo é coisa que não sobra naquele país (e em tantos outros).

Basta abrir o “Globo Esporte” dessa altura e constatar a realidade de então: “Torcida do Botafogo perde a paciência, cobra reforços e xinga Luís Castro após queda no Carioca", “Treinador foi chamado de ‘burro’ em derrota para a Portuguesa-RJ” ou “Torcedores do Botafogo protestam no aeroporto e cobram Luís Castro”. Num site especializado do clube podia ler-se o sentimento de muitíssimos adeptos do fogo. “Vamos ser bem realistas: se fosse um treinador brasileiro, já teria rodado”. Ou seja, já teria sido despedido. Os casos de Paulo Sousa e Vítor Pereira, no Flamengo, demonstram que os portugueses, estranhamente na moda no Brasil, não estão imunes a serem descartados. Castro era o treinador de Textor e Textor segurou-o.

A equipa foi afinando, descobrindo como funciona a teia defensiva desejada pelo técnico, mas também foi somando ferramentas e rostos para diferentes momentos dos jogos. O gigante Lucas Perri tornou-se no mais badalado guarda-redes do Brasileiro, pelo menos na fase inicial do campeonato. Adryelson ganhou o estatuto de muro inspirador da defesa. A fúria gingona de Júnior Santos pela direita levava todo e qualquer rival à frente. Lucas Fernandes, Gabriel Pires e Danilo Barbosa, todos com passagem pelo nosso país, davam conta da sua utilidade no miolo. Tiquinho Soares, o avançado que representou Vitória e FC Porto, tornou-se num gigante e vai jogando de uma forma zlataniana, assumindo, ajudando os colegas, pisando a bola, abrindo os braços como se fosse um pára-raios, marcando golos e mais golos.

E o Botafogo somou cinco vitórias nas primeiras cinco jornadas. As mandíbulas empurraram os queixos de tantos ou quase todos para o chão. Questionou-se que feitiçaria seria aquela. Ó, certamente vêm por aí abaixo quando os outros acordarem. O grande Botafogo estava de volta, celebraram apaixonados torcedores. De repente, os cabelos brancos de Luís Castro pareciam divinais, mesmo quando se excedeu perante uma árbitra auxiliar por causa de uma substituição. E ele, que sempre falou na intenção de prestigiar o Botafogo, ia aproveitando para mostrar as incoerências da imprensa, que normalmente vive sob o jugo do resultadismo. As opções ganham validade se houver um resultado satisfatório. Caso contrário, foi errado. Ou, no limite, burrice.

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“Quando os jogadores têm qualidade, vontade de trabalhar e quando tudo aquilo que eles traduzem em campo é fruto desse trabalho, tudo fica mais facilitado para atingirmos resultados”, explicou recentemente. “A mente deles é aberta às ideias do treinador, portanto a dimensão psicológica está como esteve sempre. Pensando sempre que o dia de amanhã pode ser melhor do que hoje.” E assim foi cambiando a trajetória desta equipa. Nos últimos tempos transformou-se num grupo muito competitivo, difícil de bater, que consegue vencer em campos como o do Palmeiras, algo que nunca acontecera na história dos clubes.

O sintético contribuiu para um futebol mais agradável em casa. Os adeptos voltaram à arena. O eufórico entusiasmo também. Com 12 jornadas disputadas, o fogo conseguiu 10 vitórias, cavando uma distância de sete e oito pontos para o segundo classificado, Grêmio, e para os terceiro e quarto classificados, Flamengo e Palmeiras, respetivamente. A equipa de Luís Castro tem a melhor defesa do campeonato, com sete golos sofridos, um registo muito melhor do que os concorrentes no pódio.

Quase dá para imaginar qualquer coisa semelhante a Elis Regina ou João Gilberto a soar nos ouvidos de qualquer adepto do Botafogo durante as 24 horas do dia. Os vídeos multiplicam-se nas redes sociais, a festa é irresistível. Aquela gente está feliz, feliz. Afinal, pode finalmente sonhar com o título de campeão brasileiro, o que não acontece desde 1995, quando Túlio desenhava verdadeiras maravilhas. Paulo Autuori, que vivera muitos anos em Portugal, era o treinador e também lá andavam Jamir e Donizete. Os três acabariam por voar para Lisboa, para representar o Benfica.

Quando tudo nas entranhas da ‘estrela solitária’ parecia gozar de ter o vento a favor, eis que surge o interesse do Al-Nassr, da Arábia Saudita, com o maior argumento do mundo: um dinheiro que parece infinito. A liga saudita tem pescado estrelas importantes no futebol europeu, dando robustez às declarações de Cristiano Ronaldo, que no passado recente defendeu que aquele seria um dos melhores campeonatos do mundo.

Luís Castro tem uma proposta do clube de Cristiano. A novela tem-se arrastado nos últimos dias no Brasil e ninguém sabe muito bem o que vai acontecer. Alguns adeptos estão preocupados, outros em pânico, agora que fizeram as pazes com o seu treinador, o mesmo que vaiaram e pediram para sair anteriormente. A imprensa local vai dando conta de reuniões e dos pedidos insistentes dos futebolistas do elenco para convencer Castro a ficar. Outros relatos dão conta de uma proposta de Textor para segurar o treinador português, de 61 anos, natural de Vila Real. Já num blogue virado para a realidade do clube, Vítor Severino, o adjunto, é apontado como uma solução para assumir e permitir a continuidade do projeto.

O que parece certo é que a decisão ainda está por ser tomada ou anunciada à direção e por isso Luís Castro vai estar no próximo jogo contra o Magallanes, a contar para a Sul-Americana, na madrugada de quarta para quinta-feira. O que é certo também, embora haja coisas mais complicadas na vida, é que será um quebra-cabeças decidir entre os milhões da Arábia Saudita e a luta por um título que era para todos improvável, ainda por cima já fora da Copa do Brasil, o que permitirá mais tempo de treino e descanso. Um triunfo ali faria ecoar o nome do treinador pelas casas da futura geração de botafoguenses.

A travessia de Castro no Brasil permite descascar as muitas camadas do futebol moderno, que exige muito e subestima o valor do tempo e do trabalho diário. De messias foi despromovido a treinador incompetente, recuperando agora o estatuto de sábio do futebol, colocando o Botafogo onde não estava há muito tempo, com uma equipa a jogar um futebol agradável e que, quando não o consegue, é uma garantia de competitividade. É um grupo total, convicto do que pode fazer, com qualidade e esperança.

Já os adeptos vão experimentando uma montanha-russa de sentimentos. Já viveram uma paixão imberbe pelo “portuga”, substituindo isso por desamor e desencantos profundos. Agora, perante a cobiça alheia e a liderança do Brasileirão, já ninguém parecer duvidar de nada e a certeza da competência do treinador nunca foi tão clara como nos dias que correm. Os clichés são a costura do futebol, certo?