Jorge Valdano, o homem que é uma espécie de consciência falante do futebol, adjetiva-o como “o jogo infinito”. Ora, ilimitados são, também, os trajetos para chegar ao topo da pirâmide do desporto-rei. Jorge Luiz Frello Filho, o jogador do ano da UEFA em 2020/21, ganhou, muito cedo, consciência disso.
Natural de Imbituda, no estado brasileiro de Santa Catarina, a Jorge - Jorginho para os mais próximos, primeiro, e para todos, depois - foi-lhe dada, com 15 anos, a chance por que tantos suspiram: um caminho para ser profissional de futebol.
Após destacar-se num torneio local, um agente ficou interessado no seu potencial e, depois de o levar para uma escola de futebol, conseguiu arranjar-lhe a opção de ingressar nos escalões de formação do Hellas Verona, em Itália. O sonho estava a um oceano de distância.
Ao princípio, tudo era novo e entusiasmava o jovem. Mas a novidade rapidamente se foi tornando rotina. Durante o seu primeiro ano no país transalpino, Jorginho só podia treinar, visto que a sua licença de jogador ainda não tinha ido do Brasil para Itália, impossibilitando-o de disputar partidas.
Mas o pior não era isso: Jorginho só recebia 20 euros por semana.
Quando o jovem teve a permissão para jogar, fazia-o numa equipa local, o Berretti, que militava na Serie C1, visto que o Hellas Verona não tinha um conjunto para a sua faixa etária. No Berretti, Jorginho conheceu outro brasileiro, um guarda-redes chamado Rafael. E foram as conversas com o seu compatriota que mudariam a trajetória de Jorginho.
Rafael interessou-se pelo jovem, questionando-o sobre como tinha ido parar ali. E Jorge disse-lhe que estava a viver com 20 euros por semana, para espanto do guardião. Rafael, mais velho, fez alguns contactos, falou com as pessoas certas e descobriu que o agente de Jorginho estava a desviar a maior parte do salário do jogador, ficando com ele sem que o adolescente, a viver a um oceano de casa, soubesse.
Para compreendermos a angústia de um menor de idade que se encontra noutro continente e acaba de perceber que foi enganado pela pessoa que se tinha habituado a idealizar como o homem que lhe abrira as portas do sonho, o melhor é passarmos para o discurso direto.
“Naquele momento só queria desistir. Estava completamente arrasado. Liguei para casa a chorar e disse à minha mãe que ia voltar e não queria voltar a jogar futebol”, contou Jorginho, em 2019, ao site do Chelsea, seu atual clube.
As mães servem para ouvir, mas também para dizer aos filhos aquilo que eles podem não querer ouvir. “A minha mãe respondeu-me: ‘nem penses em voltar. Estás tão perto do que desejas. Não vou deixar que voltes para casa! Tens de ficar aí'”. E ele ficou.
Não foi a primeira vez que a mãe de Jorginho teve uma influência decisiva na vida do seu filho. Maria Tereza Freitas jogou futebol em equipas amadoras do estado de Santa Catarina. A sua carreira como número 10 durou até aos 45 anos e o bichinho pelo cheiro a relva, pela convivência no balneário e, sobretudo, a paixão pela bola foram passados de mãe para filho.
“Desde muito cedo que ele quis acompanhar a minha carreira”, revelou Maria Tereza ao “Globoesporte”. “Ele perguntava quando é que eu tinha jogo e pedia para vir comigo. Eu dizia-lhe que não havia lugar no autocarro para ele, mas ele insistia, dizia que ia em pé ao meu lado. E acompanhou-me a muitos encontros”.
E, juntamente com a paixão pelo jogo, a mãe de Jorginho também passou ao seu filho alguns dos seus conhecimentos. Maria Tereza costumava levar o filho para a praia e treinava com ele passes, recepções ou mudanças de direção. “Foi ela que me ensinou os fundamentos”, confessa o agora jogador europeu do ano.
Mas os ensinamentos de Maria Tereza não pareciam convencer Andrea Mandorlini. Aos 19 anos, Jorginho estava a viver a sua primeira temporada na equipa principal do Hellas Verona, dando assim razão à imposição da sua mãe para que continuasse em Itália. No entanto, Mandorlini, o técnico da equipa, pouco confiava no jovem no começo da temporada 2011/12.
Em vários encontros, Jorginho nem foi convocado e, impaciente, estava decidido a abandonar o clube, tal como, anos antes, se convencera a sair de Itália. Pegou no telefone e ligou ao seu novo empresário, comunicando-lhe que pretendia ser transferido em janeiro. Entretanto, o treinador que o havia orientado na campanha anterior, no Sambonifacese, por empréstimo do Hellas, tinha assinado pelo Mantova, da quarta divisão. Consciente da situação de Jorginho, esse técnico falou com o jovem e disse-lhe que, se pretendesse ter minutos, as portas da sua equipa estariam abertas.
E o jogador disse ao seu empresário que queria ir. Mas o seu agente, tal como a sua mãe anos antes, impediu-o. Disse-lhe para se acalmar e ser paciente, que a oportunidade surgiria.
E ela apareceu.
“Três ou quatro semanas depois disto, um dos jogadores do Hellas lesionou-se num jogo com o Bari. O treinador olhou para o banco e parecia desesperado, sem saber o que fazer. Acabou por me colocar na partida e vencemos por 1-0. Na semana seguinte, fui titular contra o Empoli, marquei, assisti e fui o melhor em campo. Foi o momento de viragem na minha carreira”, recordou Jorginho ao site do Chelsea.
A partir daquela altura, pouco antes de cumprir 20 anos, a carreira do médio foi subindo patamares a uma velocidade vertiginosa. Ajudou o Hellas a subir à Serie A em 2012/13 e, a meio da temporada 2013/14, assinou pelo Nápoles. Em pouco mais de dois anos, Jorginho passou de querer assinar por uma equipa da quarta divisão para transferir-se para um dos históricos de Itália.
E no San Paolo conheceu mais uma das pessoas com influência decisiva na sua carreira: Maurizio Sarri. O técnico italiano chegou ao Sul em 2015 para transformar o Nápoles num vulcão de bom futebol, admirado por toda a Europa. E, no coração da equipa, estava Jorginho.
Com Sarri, o médio assumiu-se definitivamente como metrónomo fiável e belo, simultaneamente certeiro a ditar o ritmo de jogo e estético a fazer a equipa mexer. Com um estilo simples, Jorginho utiliza os “fundamentos” que aprendeu com Maria Tereza, fazendo da receção limpa e do passe preciso as grandes armas do seu jogo. Sem precisar de grandes correrias, ocupa bem o campo; sem se aventurar numa overdose de passes longos, faz a bola mover-se e chegar em condições a todo o lado; sem espalhafatos, é um líder em campo, sempre a dar indicações aos companheiros, usando os braços para auxiliar os colegas nas movimentações, mesmo quando tem a bola nos pés.
Após ficarem, por duas vezes, em 2.º lugar na Serie A, somente atrás da Juventus, Jorginho e Sarri fizeram as malas para continuarem, juntos, a sua aventura. Em 2018/19, aterraram em Londres para representar o Chelsea, mas com destinos diferentes.
Se Sarri só esteve uma temporada na capital britânica, o médio assentou arraiais e viu a sua importância ir crescendo com o passar do tempo. A chegada de Tuchel ao banco dos blues, em janeiro, tornou os londrinos num conjunto sólido, competitivo e ganhador. A conquista da Liga dos Campeões, na final do Porto frente ao Manchester City, e da Supertaça Europeia, contra o Villarreal, testemunham o sucesso que o casamento do técnico alemão com a equipa inglesa tem tido.
Mas não é só com a camisola do Chelsea que Jorginho, em 2021, se tem banhado nas águas da glória.
O centrocampista joga, desde 2016, pela seleção italiana, representando o país que, ainda adolescente, o acolheu. E, após pouco contar para Gian Piero Ventura, o técnico que não conseguiu levar Itália até ao apuramento para o Mundial 2018, Jorginho tornou-se num dos indiscutíveis de Roberto Mancini na squadra azzurra.
Na caminhada transalpina rumo ao triunfo no Euro 2020, Jorginho dedicou-se a fazer o mesmo que, nos últimos meses, tem feito no Chelsea. Com o seu jeito sereno e tranquilo, ilumina cada posse de bola da sua equipa, oxigenando o jogo para as zonas do campo onde a pressão dos adversários for menos intensa. De presença firme à frente da área, evidencia que a leitura dos espaços, a intuição para roubar a bola e a inteligência nas abordagens são argumentos defensivos mais eficazes do que a correria louca ou a agressividade descontrolada. E, claro, sempre com o seu jeito particular de marcar penaltis, com aquele pequeno salto antes do momento do remate que tantas vezes engana os guardiões.
Campeão europeu de clubes e seleções, vencedor da Supertaça Europeia e jogador do ano da UEFA (e ainda com a final four da Nations League e o Mundial de Clubes por disputar), ter a prateleira cheias de títulos nos últimos meses posiciona Jorginho como real candidato à Bola de Ouro. Mas o médio relativizou, em entrevista à “Gazzetta dello Sport” após o triunfo no Europeu, a sua candidatura ao prémio.
“Depende dos critérios de votação. Se falarmos de talento, sei que não sou o melhor do mundo. Mas se escolhermos com base nos títulos, bem, ninguém ganhou mais do que eu este ano. Como é que me comparo com Messi, Ronaldo ou Neymar? Eles têm características totalmente diferentes das minhas. Repito, depende dos critérios.”, disse.
Com ou sem Bola de Ouro, Jorginho é, aos 29 anos, um dos melhores significados de “jogar bem” que podemos encontrar nos relvados do futebol europeu. E não se esquece do papel daqueles que evitaram que desistisse daquilo que hoje é a realidade, mas que há algum tempo se assumia como objetivo distante. “Eu tinha um sonho quando cheguei a Itália. E nunca desisti, apesar de ter vivido momentos difíceis, e muito graças ao apoio dos que me são próximos. Tudo o que me está a acontecer, todos estes títulos, não são só para mim, mas também para a minha família e amigos”, disse logo após a final do Europeu.
Quando liga a televisão, Maria Tereza vê o seu filho colocar em prática os seus ensinamentos. Lições que, conjugadas com o talento de Jorginho, o levaram para longe. “Quando ele começou a jogar nas escolinhas, eu pensava, com coração de mãe, que ele ia para longe de mim, mas imaginava que fosse para São Paulo ou para o Rio, não para o outro lado do oceano. Quando penso nele, passa pela minha cabeça um filme de todo os sacrifícios que ele fez para hoje colher os frutos. Nada veio de graça para o meu filho”.
Hoje, o filho da antiga número 10 de equipas amadoras de Santa Catarina é o jogador do ano para a UEFA.