Futebol internacional

O Tsubasa existe, tem 52 anos, ainda joga e dizem ser “bem cheiroso”

Ainda Eusébio marcava golos no seu pico quando Kazu Miura nasceu, no Japão. É o futebolista mais velho de sempre a marcar um golo, provavelmente é, também, o mais antigo a alguma vez jogar. Nunca foi a um Mundial de futebol com o Japão, mas foi convocado para um de futsal. Este domingo, arranca a sua 35.ª época consecutiva, já disse que pretende jogar até morrer e dois japoneses do Portimonense, que já o defrontaram, confessam à Tribuna Expresso que o têm como um exemplo
Masashi Hara/Getty

O cabelo grisalho, cada vez mais esbranquiçado. As rugas de expressão, já vincadas indisfarçavelmente na cara. A pele flácida nas partes do corpo que estão à mostra, sem musculatura que a inche. Tem uma passada pausada, uma espécie de trote constante, mas tem os piques de aceleração como os tigres-de-bengala albinos: são raríssimos.

É de outros tempos, muito idos.

Em 1967, os Beatles ainda estavam para se fazerem minimalistas com o White Album, os checos ainda não se tinha revoltado na Primavera de Praga, um cobarde e racista não assassinara Martin Luther King em Memphis, nos EUA, e a cadeira de lona que fez tombar Salazar ainda não traíra ditadores, no Estoril. Nesse ano, em Shizuoka, no Japão, nasceu Kazu Miura.

Enquanto esses eventos ou personagens desapareceram, o japonês perdurou, desafiando o adversário imbatível para qualquer desportista, genial ou não, por mais zeloso do corpo e sortudo em mazelas que seja. O tempo passa e Kazu Miura permanece. Este domingo, o Yokohama defronta o Vissel Kobe na primeira jornada da J-League, que será o arranque da 35.ª época de Miura como profissional.

Em campo, ou no banco, vai coincidir com Andrés Iniesta. O médio calvo e com branco nos poucos fios de cabelo que ainda lhe crescem, levou o desvanecer da carreira para o Japão, já há dois anos.

De vida, o espanhol tem 35, laureou-se com os maiores títulos no Barcelona e na seleção de Espanha, reputou-se como o ilusionista que escondia a bola das pernas dos adversários e, há coisa de uma semana, esteve ao lado de Kazu Miura, a sorrir, num evento de apresentação da liga japonesa. Quando Iniesta se estreou pelo Barça, em 2002, o futebolista que os nipónicos chamam de rei tinha a idade atual do espanhol.

Em 2017, pouco antes de o baixote chegar ao país, Kazu tornou-se o jogador mais velho de sempre a marcar um golo, superando outro superador do tempo, Stanley Matthews. “Não sinto que tenha ultrapassado uma lenda. Posso tê-lo superado em longevidade, mas nunca serei capaz de igualar as estatísticas e a carreira que teve”, disse, nesse dia. Em 2018, esteve em 11 jogos e, o ano passado, pisou o campo apenas uma vez.

A Miura gabam a longevidade, o empenho no treino, a minúcia no tratamento do corpo e os esforços que faz, enquanto cinquentão, para prolongar a carreira. Koki Anzai e Schuichi Gonda, do Portimonense, já jogaram contra ele. “É um exemplo para todos os jogadores”, exalta à Tribuna Expresso o guarda-redes. “É uma lenda e uma pessoa que deu muito ao futebol japonês”, acrescenta o lateral, que, quando o defronta, se lembra do quão “bem cheiroso” era.

O Japão, historicamente, é terra de longa vivência. Em 1996, a esperança média de vida no país superou a barreira dos 80 anos e, em 2016, nos últimos registos, estava nos 83.96. Por refletir a sociedade onde é jogado, e mesmo que um pouco rebuscado, até se pode entender que o futebol de lá tenha vários desvarios na idade - os 41 anos de Shunsuke Nakamura, também no Yokohama FC; os 40 de Shinji Ono, no Ryukyu; ou as quatro décadas de Yasuhito Endo, no Gamba Osaka.

Mesmo assim, o rei Kazu é uma relíquia.

Todos jogam em clubes da J-League, mas, em 1993, só Miura estava na época inaugural da liga, em que desatou a marcar e terminou com mais golos do que Zico e Gary Lineker. Começou a carreira em 1986, no Brasil, para onde viajou sozinho, adolescente imberbe a fugir do amadorismo do futebol japonês.

Chegou a jogar no Santos e no Palmeiras, antes, porém, aturou o gozo que os brasileiros focavam na sua técnica e primeiro toque, ouviu das bancadas vómitos de preconceito bacoco - “Hey, japonês, vai fritar tempura”, contou, à “The Athletic” - e suportou dormir em quartos com seis miúdos e pulgas no colchão. “Se és assim tão fraco, então sim, volta para o Japão”, reprimiu o pai, quando lhe disse que pensava em desistir.

A resiliência deu-lhe combustível, voltou ao Japão e muito fez pela popularidade do futebol na nação viciada em beisebol. Tem 221 golos feitos, 55 deixados na seleção, que ajudou a qualificar para dois Mundiais sem o convocarem para algum. Em 1998, justificaram a decisão com a idade. Tinha 31 anos.

Em 2012, foi chamado para seleção japonesa de futsal que competiu no Campeonato do Mundo. “Quero rematar sempre que possa e marcar muitos golos”, esperançou, fazendo figas no discurso, mas participou em apenas um jogo. Foi, mais ou menos, nessa altura, que as 11 horas de cada 11 de janeiro virara o tempo de Kazu: todos os anos, neste dia, a esta ordem do relógio, ambas a bater certo com o seu número predileto de camisola, ele anuncia se continua a jogar ou se faz o que ninguém o condenará por fazer.

Tornou-se hábito esperar de Miura, nessa ocasião, fatos de cores berrantes. O japonês sempre os veste. É já quase uma efeméride cultural no país, como é o seu aniversário, a 26 de fevereiro, motivo para jornalistas e câmaras de televisão invadirem o lugar onde estiver.

O ano passado, os parabéns a você foram adiados por um dia, porque um convite antecipou-se e Kazu celebrou mais uma volta ao sol a beber chá com os imperadores do Japão, no Palácio Real de Tóquio. “Posso ter 52 anos, mas a minha mente e o meu corpo são jovens. Vou jogar até morrer”, explicou, fora do domínio do será possível, ou prudente. “É o monumento da equipa. Sem o Kazu, talvez nem existisse equipa, os patrocinadores iriam embora”, temeu Jong-a-Pin, também falando à “The Athletic”.

Oliver e Benji não foram desenhados com cabelos brancos, a correrem lentamente por campos de futebol intermináveis, capazes dos feitos mais implausíveis com idade para já estarem quietos. Não, quando a banda desenhada do capitão Tsubasa foi lançada em televisão, em 1983, já Kazu Miura se aventurava no Brasil, a perseguir uma carreira que ainda dura.

Ele nasceu em 1967, no mesmo mês de Roberto Baggio, que se retirou em 2004, também grisalho, lento, cadente e admirado. A série animada de Tsubasa durou até 1986, coincidindo com o início de Miura. E o japonês ainda dura. Oliver é ele, e é real.