Um serão passado entre adversários de pontas opostas da tabela pode esconder muitas particularidades. Um desafio que envolve quem acaba de vir da Liga dos Campeões e quem foge a disputar a próxima edição da II Liga pode ser um relato de novidade e estranheza, de anormalidade e beleza.
Assim foi o FC Porto-Vizela, jogo que poderia ser uma mera formalidade mas que, subitamente, se tornou um interessante despontar de narrativas que captam a atenção. Tarjas roubadas, ineficácia, um jovem canhoto português a imitar um neerlandês voador: houve espaço para tudo na vitória dos azuis e brancos por 4-1, resultado que ajuda a lamber as feridas da eliminação europeia.
Durante quase todo o encontro, seria possível arrendar boa parte do relvado do Dragão, quem sabe para ajudar a combater a dura crise da habitação. Os minhotos entraram formando, muitas vezes, uma linha defensiva de seis homens, cautelas que se acentuaram a partir do momento em que, aos 49', a expulsão de Lacava os deixou reduzidos a 10 homens.
Ao intervalo, as estatísticas contavam um mistério: 14 remates para o FC Porto, zero para o Vizela; zero golos para o FC Porto, um para o Vizela. A chave da incógnita? O autogolo de Pepe aos 17', capaz de dar vantagem a uma equipa que não fez qualquer disparo enquadrado com a baliza rival em todo o desafio.
Só ao 17.º remate terminou a ineficácia. Depois de bolas nos postes, falta de pontaria ou defesas de Buntic, Francisco Conceição pegou na bola na direita. Durante muitos anos, quando Arjen Robben tinha ali a bola, todos sabiam o que ia acontecer, ninguém era capaz de o evitar.
Há, na essência do irrequieto canhoto português, algo dessa arte Robbeniana, a mesma procura do pé mais forte, o mesmo movimento previsivelmente incontrolável, a finta curta, a saída explosiva, a procura pela baliza. O 1-1 do recentemente estreado nas opções da seleção A abriu caminho para a reviravolta perante um Vizela de rastos.
O jogo deu-se perante um panorama pouco comum nas bancadas. As claques do FC Porto, em protesto pelo roubo de tarjas que haviam sido doadas ao museu do clube, estiveram parte da partida ausentes e outra parte caladas. Para contribuir para a diferente banda sonora, durante largos minutos do primeiro tempo eram as outras bancadas que se ouviam.
Depois do intervalo, o FC Porto emitiu um comunicado sobre o sucedido. Ouvido o apito final, Sérgio Conceição aplaudiu efusivamente as bancadas centrais, apontando para estas em agradecimento, como se parte do triunfo fosse delas.
A novela das tarjas deu o mote para a noite estranha. Logo aos 10', Conceição ensaiou um golo à Robben que seria adiado, antes do tal 1-0 do Vizela obtido sem qualquer remate à baliza. Após o erro, as bancadas cantaram “Pepe! Pepe! Pepe!” em uníssono. Privilégios de lenda.
Com Lacava e Lokilo juntando-se à linha de quatro defesas do Vizela, Bruno Costa e Samu somavam-se à frente do setor recuado para formar uma muralha minhota. Perante a concentração populacional à frente da baliza visitante, os locais sofriam pequenos ataques de nervos, incapazes de fintar as florestas de pernas.
Aos 35', Chico Conceição, Nico González, Pêpe e Otávio foram, para desespero do público, passando a bola entre eles, quais andebolistas, incapazes de encontrar uma nesga para finalizar. O descanso chegou mesmo com vantagem para o Vizela.
Se a resistência vizelense foi, na etapa inicial, algo entre o heroísmo e o acaso, aos 49' esse adiar do golo passou a ser do domínio do impossível. Chico Conceição, imparável durante todo o jogo, só foi parado por Lacava em falta, a qual valeu o segundo amarelo ao extremo tornado lateral.
Aos 54', a cara nova entre os eleitos de Martínez fez o 1-1. Se pedíssemos a um qualquer programa para apagar as caras dos jogadores, não teríamos dificuldade em adivinhar, entre os 21 homens em campo, qual teria protagonizado aquela ação.
O empate deu o mote para que o FC Porto encontrasse a eficácia. De forma natural perante o quebrar da oposição do adversário, Pepê, servido por Namaso, fez o 2-1 e Evanilson apontou o 3-1. Em cima do final, Francisco Conceição, sempre em alta rotação, viu Buntic negar-lhe o 4-1, mas Toni Martínez, na recarga, fez o resultado final.
Um vermelho, um autogolo, uma equipa que marcou sem rematar à baliza, controvérsia em torno de tarjas e museu. Tudo aconteceu em duas horas em que o melhor que aconteceu foi, mesmo, o talento irreverente de Francisco Conceição.