Foi no parque das Caldas da Rainha onde João Almeida aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas. Ia para lá, tentava dar umas pedaladas na relva e caía para o lado. Pouco a pouco, o equilíbrio foi aumentando, a sensação de liberdade crescendo, a companhia das duas rodas tornando-se uma constante.
Começou no BTT, passando depois para as estradas. Nas primeiras corridas, a nível regional, diz que se “safou bem”, andando entre os primeiros 10 ou 15 colocados. A certo momento, ficou em 7.º em duas provas seguidas, o que o motivou mais, mas longe de ser um ganhador em série desde a infância.
A evolução foi sempre olhando “ao próximo objetivo”, não mirando a “sonhos de longo prazo”. A cada momento do trajeto, queria subir o degrau seguinte, avançar no escalão etário, estar à altura das exigências de correr contra gente mais velha ou mais bem preparada.
Na televisão, via o britânico Chris Froome ganhar o Tour — fê-lo em quatro ocasiões —, idolatrava-o, mas não pensava “vou ser como ele”, garantiu quando o Expresso o considerou uma das 50 personalidades que representariam o futuro de Portugal. Mas a ascensão foi-se dando, dos escalões de formação a profissional, da surpresa ao andar 14 dias de rosa no Giro 2020 à confirmação nas temporadas seguintes, estabelecendo-se como regular entre os melhores nas principais corridas do calendário.
Agora, o homem de 24 anos que tem uma estátua em A-dos-Francos, onde nasceu e cresceu, subiu outro degrau, este fundindo a sua história pessoal com a do desporto português: é o primeiro português desde Joaquim Agostinho, 3.º no Tour de France 1979, a terminar no pódio de uma grande volta.
Na última etapa do Giro, tirada de consagração rumo a Roma, o caldense da UAE-Emirates selou o 3.º lugar na jornada vencida ao sprint por Mark Cavendish. Atrás do vencedor Primoz Roglic, que junta a corsa rosa às três edições da Vuelta , e do 2.º classificado, o britânico Geraint Thomas - que perdeu a liderança no contrarrelógio decisivo -, Almeida obtém o melhor resultado da carreira e a mais gloriosa prestação do ciclismo nacional no Tour, Giro ou Vuelta desde Agostinho.
A lenda de Torres Vedras foi 2.º na Vuelta 1974 e 3.º no Tour 1978, posição que repetiu na edição seguinte, há 44 anos. Desde então, não houve outro corredor português entre os três primeiros nas maiores provas por etapas. O jejum foi interrompido por um caldense de bigode e pernas resistentes.
João diz que tem com a bicicleta “uma relação de amor”. Não se lembra bem da vida sem ela, seja andando com os amigos pelo mato, subindo e descendo as colina de A-dos-Francos, ou até percorrendo nela o quilómetro e meio que havia entre a casa dos pais e a escola.
Em cima do amado meio de deslocação, Almeida teve neste Giro a confirmação definitiva, a certeza de que aqui está um corredor regular e constante, um homem não só capaz de se assomar às batalhas dos melhores, mas de com eles competir diretamente e até vencer, como no Monte Bondone, na 16.ª tirada.
Olhando em retrospectiva, este pódio culmina anos de crescimento e consolidação. Em 2020, quando a pandemia colocou o calendário do ciclismo internacional de pernas para o ar, o português surpreendeu andando 14 dias como líder do Giro e terminando em 4.º da geral.
Desde aquela presença na corsa rosa, cada ano tem trazido uma versão mais completa e capaz do caldense. Em 2021, ganhou as primeiras corridas por etapas, as Volta à Polónia e ao Luxemburgo; em 2022, na estreia pela UAE-Emirates, ganhou uma dura tirada na Volta à Catalunha, era 4.º no Giro quando a Covid-19 o obrigou a abandonar a quatro dias do final e foi 5.º na Vuelta; em 2023, antes deste pódio, foi 2.º no Tirreno-Adriático e 3.º na Volta à Catalunha, duas das corridas de uma semana mais importantes.
A vida de Almeida quando não está em competição divide-se entre A-dos-Francos, onde está com a família e treina nas estradas que mais bem conhece — com regulares subidas ao Montejunto — e períodos de preparação em zonas mais montanhosas. Aí, as semanas em Andorra são uma constante, aproveitando as condições do principado onde tantos ciclistas também treinam.
Num Giro de poucos ataques e movimentações, João Almeida resistiu à Covid que eliminou Remco Evenepoel ou às quedas que deitaram fora da competição, por exemplo, Tao Geoghegan Hart. Mostrou a sua melhor versão no Monte Bondone e perdeu tempo nas duas últimas tiradas de montanhas, mas sem um verdadeiro dia de crise.
Ao pódio final, o caldense junta ainda o triunfo final na camisola branca, símbolo do melhor jovem da Volta a Itália. Porque este combate de escassas ofensivas contra Roglic e Thomas foi um duelo de gerações, com os 24 anos do português face aos 33 do esloveno e aos 37 do britânico.
É, assim, a quarta grande volta em que Almeida termina entre os 10 primeiros. Também aqui se segue a Joaquim Agostinho, porque só o corredor falecido em 1984 teve mais prestações entre a dezena de melhores, com um total de 11, todas entre Tour e Vuelta.
Pensando nos “ses” tão próprios do desporto, talvez haja alguma frustração pelos 20 segundos perdidos nas duas últimas etapas de montanha em linha. Mas, que isso seja motivo de tristeza, é talvez o mérito maior de Almeida, que com o seu talento colocou um país, outra vez, a sonhar cor-de-rosa, a acreditar que o triunfo era possível. Que o 1.º lugar não tenha chegado não deve tirar a perspetiva do quão histórico é este pódio.
Quando foi entrevistado como uma das personalidades para os próximos 50 anos, eleitas pelo Expresso, João Almeida desejou ser ele a “quebrar a sequência" sem pódios em grandes voltas. Objetivo conseguido.
Expressou, também, vontade em “não se passarem mais 50 anos sem um pódio”. Talvez seja essa a melhor notícia em torno do caldense, porque este feito parece a continuidade de algo que está no começo, não um ponto culminante ou de chegada, mas somente mais um degrau subido na ascensão em passos curtos — mas firmes e cheios de importância para o nosso desporto — descrita por Almeida.
Das aventuras por entre caminhos ladeados por plantações de pêra rocha até epopeias pelas montanhas italianas, em A-dos-Francos nasceu o homem que segue os feitos de Joaquim Agostinho. João Almeida acabou de colocar Portugal no pódio do Giro e os 24 anos, aliados à consistência demonstrada, convidam já o pensamento a ir para os próximos objetivos a alcançar. Com ou sem bigode.