Ciclismo

Após Joaquim Agostinho, eis João Almeida: caldense termina Giro em 3.º e Portugal volta ao pódio de uma grande volta 44 anos depois

Na jornada de consagração da Volta a Itália, o ciclista de 24 anos confirmou o 3.º lugar final, quebrando um jejum que durava desde 1979 nas principais corridas por etapas. Um feito que confirma um percurso ascendente num corredor que teve uma corsa rosa de confirmação entre os melhores
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Foi no parque das Caldas da Rainha onde João Almeida aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas. Ia para lá, tentava dar umas pedaladas na relva e caía para o lado. Pouco a pouco, o equilíbrio foi aumentando, a sensação de liberdade crescendo, a companhia das duas rodas tornando-se uma constante.

Começou no BTT, passando depois para as estradas. Nas primeiras corridas, a nível regional, diz que se “safou bem”, andando entre os primeiros 10 ou 15 colocados. A certo momento, ficou em 7.º em duas provas seguidas, o que o motivou mais, mas longe de ser um ganhador em série desde a infância.

A evolução foi sempre olhando “ao próximo objetivo”, não mirando a “sonhos de longo prazo”. A cada momento do trajeto, queria subir o degrau seguinte, avançar no escalão etário, estar à altura das exigências de correr contra gente mais velha ou mais bem preparada.

Na televisão, via o britânico Chris Froome ganhar o Tour — fê-lo em quatro ocasiões —, idolatrava-o, mas não pensava “vou ser como ele”, garantiu quando o Expresso o considerou uma das 50 personalidades que representariam o futuro de Portugal. Mas a ascensão foi-se dando, dos escalões de formação a profissional, da surpresa ao andar 14 dias de rosa no Giro 2020 à confirmação nas temporadas seguintes, estabelecendo-se como regular entre os melhores nas principais corridas do calendário.

Agora, o homem de 24 anos que tem uma estátua em A-dos-Francos, onde nasceu e cresceu, subiu outro degrau, este fundindo a sua história pessoal com a do desporto português: é o primeiro português desde Joaquim Agostinho, 3.º no Tour de France 1979, a terminar no pódio de uma grande volta.

Na última etapa do Giro, tirada de consagração rumo a Roma, o caldense da UAE-Emirates selou o 3.º lugar na jornada vencida ao sprint por Mark Cavendish. Atrás do vencedor Primoz Roglic, que junta a corsa rosa às três edições da Vuelta , e do 2.º classificado, o britânico Geraint Thomas - que perdeu a liderança no contrarrelógio decisivo -, Almeida obtém o melhor resultado da carreira e a mais gloriosa prestação do ciclismo nacional no Tour, Giro ou Vuelta desde Agostinho.

A lenda de Torres Vedras foi 2.º na Vuelta 1974 e 3.º no Tour 1978, posição que repetiu na edição seguinte, há 44 anos. Desde então, não houve outro corredor português entre os três primeiros nas maiores provas por etapas. O jejum foi interrompido por um caldense de bigode e pernas resistentes.

João diz que tem com a bicicleta “uma relação de amor”. Não se lembra bem da vida sem ela, seja andando com os amigos pelo mato, subindo e descendo as colina de A-dos-Francos, ou até percorrendo nela o quilómetro e meio que havia entre a casa dos pais e a escola.

Em cima do amado meio de deslocação, Almeida teve neste Giro a confirmação definitiva, a certeza de que aqui está um corredor regular e constante, um homem não só capaz de se assomar às batalhas dos melhores, mas de com eles competir diretamente e até vencer, como no Monte Bondone, na 16.ª tirada.

Olhando em retrospectiva, este pódio culmina anos de crescimento e consolidação. Em 2020, quando a pandemia colocou o calendário do ciclismo internacional de pernas para o ar, o português surpreendeu andando 14 dias como líder do Giro e terminando em 4.º da geral.

Desde aquela presença na corsa rosa, cada ano tem trazido uma versão mais completa e capaz do caldense. Em 2021, ganhou as primeiras corridas por etapas, as Volta à Polónia e ao Luxemburgo; em 2022, na estreia pela UAE-Emirates, ganhou uma dura tirada na Volta à Catalunha, era 4.º no Giro quando a Covid-19 o obrigou a abandonar a quatro dias do final e foi 5.º na Vuelta; em 2023, antes deste pódio, foi 2.º no Tirreno-Adriático e 3.º na Volta à Catalunha, duas das corridas de uma semana mais importantes.

A vida de Almeida quando não está em competição divide-se entre A-dos-Francos, onde está com a família e treina nas estradas que mais bem conhece — com regulares subidas ao Montejunto — e períodos de preparação em zonas mais montanhosas. Aí, as semanas em Andorra são uma constante, aproveitando as condições do principado onde tantos ciclistas também treinam.

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Num Giro de poucos ataques e movimentações, João Almeida resistiu à Covid que eliminou Remco Evenepoel ou às quedas que deitaram fora da competição, por exemplo, Tao Geoghegan Hart. Mostrou a sua melhor versão no Monte Bondone e perdeu tempo nas duas últimas tiradas de montanhas, mas sem um verdadeiro dia de crise.

Ao pódio final, o caldense junta ainda o triunfo final na camisola branca, símbolo do melhor jovem da Volta a Itália. Porque este combate de escassas ofensivas contra Roglic e Thomas foi um duelo de gerações, com os 24 anos do português face aos 33 do esloveno e aos 37 do britânico.

É, assim, a quarta grande volta em que Almeida termina entre os 10 primeiros. Também aqui se segue a Joaquim Agostinho, porque só o corredor falecido em 1984 teve mais prestações entre a dezena de melhores, com um total de 11, todas entre Tour e Vuelta.

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Pensando nos “ses” tão próprios do desporto, talvez haja alguma frustração pelos 20 segundos perdidos nas duas últimas etapas de montanha em linha. Mas, que isso seja motivo de tristeza, é talvez o mérito maior de Almeida, que com o seu talento colocou um país, outra vez, a sonhar cor-de-rosa, a acreditar que o triunfo era possível. Que o 1.º lugar não tenha chegado não deve tirar a perspetiva do quão histórico é este pódio.

Quando foi entrevistado como uma das personalidades para os próximos 50 anos, eleitas pelo Expresso, João Almeida desejou ser ele a “quebrar a sequência" sem pódios em grandes voltas. Objetivo conseguido.

Expressou, também, vontade em “não se passarem mais 50 anos sem um pódio”. Talvez seja essa a melhor notícia em torno do caldense, porque este feito parece a continuidade de algo que está no começo, não um ponto culminante ou de chegada, mas somente mais um degrau subido na ascensão em passos curtos — mas firmes e cheios de importância para o nosso desporto — descrita por Almeida.

Das aventuras por entre caminhos ladeados por plantações de pêra rocha até epopeias pelas montanhas italianas, em A-dos-Francos nasceu o homem que segue os feitos de Joaquim Agostinho. João Almeida acabou de colocar Portugal no pódio do Giro e os 24 anos, aliados à consistência demonstrada, convidam já o pensamento a ir para os próximos objetivos a alcançar. Com ou sem bigode.