Andebol

Chapéu em vez de lenço e jogadoras sem hijab se homens não estiverem a ver: a experiência de Ana Seabra, selecionadora de andebol do Irão

A portuguesa aceitou ser a treinadora da seleção feminina de andebol do Irão e, regressada da primeira semana em Teerão, explica as razões para ter aceitado o cargo e conta como foi a adaptação ao contexto do país e a “miúdas muito guerreiras”. Fala, também, de como está “agradecida” por ajudar “um povo que raras vezes” tem “oportunidade de trabalhar com gente de fora”

Um jogo entre as seleções femininas de Irão e Alemanha, em 2023
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Ana Seabra é a nova selecionadora feminina de andebol do Irão, um repto que implica “crescimento profissional e pessoal” e que vai ter um teste já no Mundial, em novembro, na Alemanha e Países Baixos.

“É um desafio interessante e a oportunidade de trabalhar num país que quer investir no andebol. Precisa muito de crescer, mas tem potencial”, explica a treinadora portuguesa, que jogou sete épocas no Madeira SAD e outras tantas no Colégio de Gaia.

Em declarações à agência Lusa, a antiga andebolista internacional portuguesa revela que já tinha recebido um convite de um clube iraniano, que ficou suspenso devido às “tensões com os Estados Unidos e Israel”, tendo agora surgido esta possibilidade, através do diretor técnico da seleção masculina, que conhece o trabalho de Ana Seabra a dirigir as espanholas do Atlético Guardés, da Galiza.

“É ter a oportunidade de crescer numa outra realidade e cultura, o que para mim é super-interessante e curioso, porque gosto de desafios. Acima de tudo, gosto de conhecer e de aprender”, acrescentou a treinadora, que se comprometeu por dois anos.

Ana Seabra acabou de voltar da primeira semana de estágio em Teerão, tendo encontrando um país mais moderno e evoluído do que imaginara, condições de trabalho acima do esperado e um povo inexcedível a fazê-la sentir-se em casa.

“Foi tudo incrível, desde as pessoas super atenciosas e cuidadosas à atitude das atletas, dedicadas e com muita vontade de aprender e evoluir. O Mundo não conhece a realidade iraniana. Obviamente, têm os seus problemas, mas a verdade é que fiquei muito contente e surpresa com tudo o que encontrei”, regozijou-se.

A técnica ficou sensibilizada pelos “agradecimentos regulares” por ter aceitado o desafio - “para algumas mulheres pode não ser fácil a adaptação à cultura” – e revelou que foi “super tranquila” a sua adaptação ao modo de vida iraniano.

“Facilitaram muito a minha presença e deixaram que me ajustasse, fizeram tudo para que me sentisse à vontade. Obviamente, também me ajustei a algumas coisas que para eles eram muito importantes, não por eles mesmos, mas pelo governo e pela cultura e influência da religião, que as autoridades levam muito a sério e são exigentes”, assumiu.

Contou que apenas nas instalações da federação e captação de imagens oficiais lhe pediram para colocar o lenço na cabeça, cobrir pernas e braços, atitude que não precisa replicar no quotidiano.

“Perceberam logo que eu e os lenços não nos estávamos a dar muito bem e tiveram o cuidado de me oferecer quatro chapéus e dizer ‘olha, não há problema, já percebemos que a coisa não está a funcionar muito bem, podes usar o chapéu’. Pediram-me para usar apenas em situações oficiais”, sublinha.

De resto, testemunha uma capital, Teerão, em que “as mulheres andam à vontade, de manga curta, cabelo solto e à mostra, sem lenço”.

Partilhou um episódio num treino em que as portas foram fechadas à presença masculina, pelo que as atletas puderam treinar sem hijab, “super contentes e libertas”: “No seu dia a dia, é opcional. Para jogar, é obrigatório, contudo já estão habituadas”.

“Encontrei miúdas muito guerreiras, com um potencial incrível. Gostei muito do que vi, o que me motiva ainda mais”, reforçou.

Ana Seabra sente que o desporto “ajuda à emancipação feminina” das iranianas, algo para o qual contribuem também o trabalho de outros treinadores e clubes.

“Sinto que estou numa missão pessoal de poder ajudar jogadoras ou um povo que raras vezes tem a oportunidade de trabalhar com pessoas de fora. Por medo, por não saberem o que pode acontecer no Irão ou o perigo da guerra. Senti-me muito agradecida por ajudar e tenho vontade de contribuir para desenvolver o grande potencial que encontrei”, constata a selecionadora.

No Mundial, ao qual chegou com a quarta vaga no apuramento asiático, o Irão vai ter como adversárias Suíça, Hungria e Senegal, tendo como objetivo “aproximar o nível de jogo” a seleções internacionais, sobretudo às asiáticas, nomeadamente Japão, Coreia do Sul e China, referências na região.

“O Irão merece uma oportunidade e não tenho receio nenhum de aceitar este tipo de desafios. Nunca tive medo de coisas difíceis, por muito que deem trabalho”, concluiu Ana Seabra.