O desconhecido ser “aberrantemente assustador” não é a constatação mais estrondosa, qualquer pessoa já o sentiu, há quem se queira enganar mas é factual que estamos às escuras nesta vida. Ouvir uma das melhores surfistas de sempre a confidenciar o seu temor por não saber o que aí vem é que causará algum espanto, sabendo as circunstâncias onde Carissa Moore costuma estar a boiar, com uma prancha: em Pipeline, no Havai, lá fora no mar a perscrutar ondas tubulares de dois, três ou quatro metros, à espera da que abra a maior boca para ela remar, colocar-se de pé, esconder-se lá dentro e deslizar na superfície da água que está a pouco mais de um metro da afiada barreira de coral.
Ela já esteve muitas vezes nesse tipo de onda desconvidativa à hipótese de se ser empurrado para o fundo, mas, em simultâneo, recompensadora em adrenalina gratificante a quem conseguir sair dela inteiro, as provas fotográficas abundam:
É lá nesse seu quintal de Oahu, ilha havaiana tida como uma das mecas do surf, onde Carissa Moore nasceu há 31 anos, que a surfista se emaranhou em incertezas tantas vezes, a temer pela sua capacidade, cheia de perguntas na cabeça. “Quando estou no pico destas ondas e é a minha vez, e tenho de enfrentar esse medo, vou fugir ou vou aceitá-lo? Vou confiar em mim e na minha aptidão? Será que vou em frente?”, contou, ao “New York Times”, numa entrevista que serve de compêndio para demonstrar como o casulo da dúvida aprisiona até os desportistas mais sublimes.
A havaiana não gosta da palavra “retirada”. Com cinco títulos mundiais em 13 temporadas no CT e regressada, em 2021, de Tóquio com a medalha de ouro olímpica, contudo, é isso que fez na semana passada. “Gosto de dizer que é uma saída do tour, ou uma mudança de contexto. Ou uma evolução”, disse, bicéfala na admissão do que a ‘reforma’ a fez sentir: ao jornal norte-americano que lhe dedicou uma reportagem confessou o medo perante o desconhecido, à World Surf League (WSL) frisou o “entusiasmo” por vir a “descobrir o que existe além da licra” de competição que cada surfista veste antes de entrar no mar.
Mais certeiro é descrever como perda incalculável a novidade que, na terça-feira, se juntou à protagonizada por Carissa Moore. Uma semana depois, a australiana com quem mantinha uma amigável rivalidade pela coroa do surf feminino também anunciou a saída do circuito, deixando-o sem os seus nomes mais populares e angariadores de atenção: Stephanie Gilmore tão pouco irá competir este ano. “Planeio usar este tempo para me refrescar fisica e mentalmente, desfrutar de swells e surfar em novos lugares. Tenho projetos e viagens que pretendo fazer”, concedeu a recordista de títulos mundiais (oito), afável no sorriso que passeia em qualquer parte.
O batismo de ‘Happy Gilmore’, alcunha que há muito lhe etiquetaram, não é casual.
A saída de cena da campeã australiana, a dias de dobrar as 36 tormentas na idade, diverge do anúncio da amiga havaiana. Gilmore diz que regressará em 2025, refeita do cansaço da redoma competitiva e das viagens constantes por vários fusos horários que não mencionou, nem precisa. “Ainda sou apaixonada e dedicada à competição”, garantiu, é de louvar os “objetivos e sonhos” que “ainda” diz “perseguir” na vida de ter de haver quem perde e ganha. E espera que o hiato sabático “os ative”, porventura espicaçada por ver a amiga a fazer a sua retirada com exceções.
Apesar de retirada, perdão, da “evolução” para longe do circuito se render, em grande parte, à sua vontade em ser mãe e começar uma família, que nunca escondeu, Moore ainda vai competir, este mês, na etapa inaugural do circuito, em Pipeline. Se o passo de Stephanie é um até já, isto reforça a noção de adeus que cola à decisão de Carissa - e ela também ainda competirá nos Jogos Olímpicos do próximo verão, cuja prova de surf de Paris terá muito pouco por se realizar no Taiti, nos tubos de Teahupo’o que ela diz temer. “As minhas ondas preferidas, a maior adrenalina que tive deu-se quando remei para lá do que o meu coração e a minha cabeça me dizem para não ir”, reforçou na guarda que baixou para conversar com o “New York Times”.
Num ápice, o circuito vê as duas mais reputadas mulheres abandonarem a competição, escancarando um vazio evidente. Sem os 13 campeonatos mundiais que têm em conjunto - Layne Beachley, há muito retirada, tem sete -, restam apenas Tyler Wright, australiana duas vezes campeã, e a norte-americana Caroline Marks, vencedora da coroa em 2023, quando ganhou as WSL Finals a Moore, crítica do formato inventado pela entidade para tentar apetrechar audiências e insuflar o interesse pela disputa: desde 2021 que a mulher e o homem que terminam o ranking na liderança não são os vencedores, porque vão disputar uma espécie de play-off final entre os seis melhores classificados da hierarquia. Nas três edições, Carissa Moore acabou o ano no 1.º lugar, mas só colheu um título.
Derrotada por uma Stephanie vinda do sexto lugar da tabela numa dessas ocasiões, ouviu a australiana reconhecer, no palanque da entregue dos prémios em Trestles, nos EUA, praia de mar murcho, que “o ano pertence à Carissa”, declaração omitida de qualquer vídeo posto a circulares nas redes sociais por uma WSL vidrada em ter conteúdos de partilha fácil e consumo rápido. Liderada, durante os últimos três anos, por Erik Logan, que vinha de presidir à Oprah Winfried Network, foi demitido do cargo de CEO a meio do verão passado. E o surf ainda está sem cúpula definida agora que fica sem as duas maiores figuras da competição feminina.
Antes de todas essas mudanças, o Championship Tour já fora, em 2019, o primeiro circuito mundial a garantir o pagamento do mesmo prize money para homens e mulheres, luta na qual Stephanie Gilmore travava, há anos, e dos poucos temas que lhes desfazia o sorriso. “A maioria dos elogios que as surfistas recebem são do tipo ‘ó, surfas tão bem, surfas como um homem’”, criticou à revista “Elle”, perdida na conta às vezes que o seu estilo nas ondas foi descrito como “masculino” quando, no mundo, só Kelly Slater se esgueira à sua frente em número (11) de títulos mundiais. E até o lendário calvo o reconhece. “Ela é o presente de Deus para o surf. A ‘Steph’ é o standard”, defendeu, uma vez, à “Stab”, uma das publicações de referência da modalidade, ao elegê-la como surfista do ano.
Não são apenas as ondas atacadas sem temores ou soluços, com linhas de excelência, nem os títulos mundiais, que Stephanie Gilmore e Carissa Moore levam do circuito mundial. O surf de competição também vai emagrecer drasticamente em vozes inspiradoras.