Surf

Marta Paço, a tricampeã mundial de surf que nunca viu o mar

A cegueira de nascença de Marta Paço não foi um obstáculo que a impedisse de dominar as ondas. Com apenas 19 anos, já coleciona medalhas no surf adaptado. Esta é a história de quem, em 2023, se sagrou tricampeã mundial e bicampeã europeia da modalidade que está à espera de entrar nos Jogos Paralímpicos

Federação Portuguesa de Surf

Cheira a maresia. Ainda na areia, de fato vestido, é a ouvir o mar e o treinador que Marta Paço percebe “como estão as ondas”. Quando entra na água, já sabe o que esperar. Em competição não pode haver contacto físico entre atleta e treinador, e, por isso, é através da “constante comunicação verbal” que Tiago Prieto vai descrevendo o mar e orientando Marta Paço dentro de água.

Desde cedo o desporto assumiu, por iniciativa dos pais, uma parte central na vida de Marta Paço. Para a mãe da atleta, Dulce, “o desporto é, a par com a arte e a música, a melhor forma de inclusão” e de manter a filha “ativa e saudável”. Por isto, com apenas 8 meses, Marta Paço entrou para a natação. Entretanto, já praticou equitação terapêutica e goalball – desporto desenvolvido exclusivamente para pessoas com deficiência visual –, mas foi a paixão pelo surf que levou a melhor. Hoje, como conta a mãe, é “viciada em surf e no mar”.

Foi na praia do Cabedelo, em Viana do Castelo, que, com 12 anos, Marta Paço descobriu a modalidade. “A minha mãe tinha um café junto à praia que era frequentado pelo meu treinador e outros treinadores do Surf Clube de Viana que me desafiaram a experimentar o surf. Eu fui, adorei e decidi continuar”, conta. Desde esse dia, o percurso até à competição foi natural. “Não tenho noção de um momento em que eu tenha pensado que a partir dali estava a treinar para competir”, afirma a atleta.

Para Dulce Paço encarar a decisão da filha de começar a surfar não foi fácil e, confessa, “o receio inicial ainda se mantém até hoje, não sempre, mas pontualmente surge”. As dúvidas, que Marta Paço diz perceber, foram tranquilizadas muito graças ao papel desempenhado por Tiago Prieto, treinador que a acompanha “desde o primeiro dia” no Surf Clube de Viana.

Para o treinador foi sempre evidente que Marta Paço estava “pronta e disponível para novas experiências, sempre muito motivada e com vontade de aprender”. Nas palavras do treinador, a quem não faltam elogios, a surfista coleciona “todos os ingredientes que um atleta precisa para ser bem-sucedido e vencer”.

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Os olhos emprestados no mar

“Rema”, “Sobe para a prancha”, “Vem aí uma onda boa”, “Vira para a esquerda”, vai dizendo o treinador entre o som das ondas. “Entramos na água sempre juntos e a partir daí ele dá-me todas as indicações para que eu consiga fazer surf o mais autonomamente possível”, explica Marta Paço. “Desenvolvemos um conjunto de códigos verbais que me permite explicar-lhe tudo o que precisa para executar uma boa performance”, acrescenta Tiago Prieto.

A rotina de treino de Marta Paço é intensa. “Nos últimos cerca de 5 anos, treino quatro ou cinco vezes por semana, muitas vezes seis”, conta. Diz que a família e os amigos já estão habituados a que esteja ocupada. No (pouco) tempo livre, como conta a mãe Dulce, “adora ter o seu espaço para fazer aquilo de que mais gosta: ler e ouvir podcasts na companhia dos animais de estimação, a gata Nina e a cadela Zuca”.

Às viagens, treinos e competições, junta-se a vida académica. No último ano, mudou-se para Lisboa, para frequentar a Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa. A decisão surgiu naturalmente, em resultado de experiências que o surf adaptado também proporcionou. “Quando comecei a viajar acabei por conhecer algumas pessoas em várias organizações e contextos ligados às relações internacionais e sempre tive um fascínio muito grande pelo trabalho que fazem”, explica a atleta. Apesar de admitir o nervosismo do primeiro dia de aulas, conta que a integração foi “muito boa em todos os aspetos”. E acrescenta: “Adorei as pessoas que tenho conhecido e estou muito feliz lá.”

No futuro, Marta Paço gostava de conseguir conjugar os dois mundos: “Viajar, fazer surf e trabalhar em alguma coisa relacionada com o curso, por exemplo, com ONGs”. Para já, tem dado provas da sua capacidade de adaptação, conciliando o percurso académico em Lisboa com a nova rotina de treino em Viana do Castelo. “Optei por vir a Viana todas as semanas à quinta-feira para treinar sexta, sábado e domingo e, em Lisboa, conjugar treinos de ginásio e treinos de natação para manter a condição física”, refere.

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A decisão de se dividir por duas cidades tem uma razão simples. “Eu não queria trocar de treinador”, diz Marta Paço. Afinal, além da relação treinador-atleta, algo mais fica deste percurso conjunto. Tiago Prieto não hesita em afirmar que Marta Paço “é família” e a atleta frisa o papel central do treinador, “inicialmente só no surf e depois na minha vida em geral”. Numa modalidade como o surf adaptado a pessoas cegas, em que o treinador “funciona basicamente como os olhos” da atleta, a confiança é fundamental para o sucesso. “Sem esta relação de proximidade, eu não poderia sequer começar a surfar, quanto mais ganhar campeonatos”, reconhece a surfista.

E têm sido muitos os que, lado a lado, têm vencido. De todas as medalhas, é difícil escolher a mais marcante, mas Marta Paço destaca duas competições: o seu segundo Campeonato do Mundo, “pela dinâmica dentro da equipa e porque fiquei feliz de ter conseguido ganhar uma medalha no primeiro ano do meu treinador enquanto selecionador nacional de surf adaptado”; e o seu primeiro Europeu, em Viana do Castelo, onde teve “toda a família e todos os amigos sempre na praia a apoiar, o que não acontece muitas vezes”. Esse apoio, atesta, faz com que haja “mais pressão”, mas, “ao mesmo tempo mais alegria ao comemorar”.

Para o futuro fica ainda o objetivo, que Tiago Prieto considera possível de alcançar, de participar nos Jogos Paralímpicos. O surf adaptado ainda não é considerado modalidade paralímpica, mas, para Marta Paço, a expetativa da sua inclusão na competição de 2028, em Los Angeles, é “grande”. “Preenche todos os critérios para que seja aceite”, esclarece.

Para o treinador, é clara a capacidade que Marta Paço tem de, “com o seu exemplo, promover o desporto adaptado e potenciar e desenvolver o desporto inclusivo”. Para a atleta, ser vista como um modelo é uma “responsabilidade bastante grande”, não deixando de alertar para a realidade “ainda muito fechada” da comunidade das pessoas com deficiência no país: “Ouvem-se histórias mesmo bizarras, por exemplo, de pessoas cegas em Portugal que não saem do quarto. Se eu conseguir inspirar uma dessas pessoas a tentar fazer algo que se sinta confortável a fazer, que não tem de ser desporto, e que mude a sua vida para melhor, nem que seja um bocadinho, eu acho que já valeu a pena.”

A surfista vai, pelo menos, inspirando os que a rodeiam. Dulce Paço conta orgulhosamente que a filha “sabe qual é o seu papel na sociedade, sabe estar nos meios que a rodeiam, tanto académico, como no desporto e na comunidade com deficiência” e o treinador não esconde que o percurso com a atleta “tem sido uma experiência enriquecedora e gratificante” - “Com a Marta aprendemos todos os dias a ser resilientes, a contornar os obstáculos, a encontrar soluções para os problemas e a relativizá-los”, afirma Tiago Prieto.

Marta Paço é, nas suas próprias palavras, sobretudo “independente”. Ela própria o explica: “Luto para conseguir fazer as minhas coisas sozinha e sem depender de ninguém.” Quando o treino termina e Marta Paço sai da prancha, troca o fato de surf pelas roupas do dia-a-dia, mas a atitude é a mesma. Diz ser “uma pessoa que tenta todos os dias ser um bocadinho melhor”. No surf e na vida, o objetivo é a superação. E o caminho, a resiliência.

* texto de Mariana Ramos Loureiro editado por Diogo Pombo.