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Peter fotografou a última onda de Márcio Freire, primeiro surfista a morrer na Nazaré: “A espuma apanhou-o, foi pesado de testemunhar”

Peter ‘Joli’ Wilson é um fotógrafo australiano que viu a Nazaré, pela primeira vez, em 1989, muito antes de ser um lugar no mapa das ondas gigantes. Na quinta-feira passada estava no alto do penhasco da Praia do Norte, onde viu Márcio Freire a surfar a onda que lhe provocou a morte. À Tribuna Expresso, conta como foi testemunhar a primeira tragédia deste tipo nas ondas gigantes da Nazaré
Peter 'Joli' Wilson

Pausada, a demorar o seu tempo e melódica, a voz de Peter ‘Joli’ Wilson é enganadora sem um mililitro de malícia. Quiçá por já ter perdido a conta aos sóis vividos a fechar um olho para o outro olhar através de uma câmara, fala com inesperada serenidade para quem, há dias, testemunhou uma tragédia. O australiano estava no alto do penhasco que se precipita sobre a Praia do Norte, na Nazaré, um titã rochoso a impor-se contra a chegada de gigantes aquáticos, quando Márcio Freire se pôs de pé no que lhe pareceu ser, “provavelmente, uma das maiores ondas dessa tarde”.

Peter recorda a interpretação que então lhe veio. Momentaneamente, ele há muito que está programado a pensar na perspetiva de lentes, diafragmas e obturadores, portanto a sua descrição partiu da sonolência da luz quando o brasileiro desceu a tal onda. “Estava muito bonita, já começava a ganhar aquele tom dourado. Não era uma onda zangada, era bonita de se ver”, retrata, ao telefone. O céu “estava limpo”, o cadente sol “brilhava”. E Márcio Freire foi engolido pelo lábio branco de uma mandíbula a fechar-se, “apanhado pela espuma no final da onda” enquanto a objetiva do australiano o acompanhava.

Ele viu e fotografou o esforço de Lucas Chumbo, outro brasileiro que pilotava um jet-ski, a socorrer e retirar o amigo do mar, rasgando-lhe o colete salva-vidas para urgentemente o tentar salvar com manobras de reanimação. Do momento em que Márcio Freire, de 47 anos, desapareceu na água branca, até os esforços socorristas pararem no areal, foi cerca de uma hora. “Quanto mais tempo passava, pensei que não haveria de ser um desfecho positivo”, lamenta Peter Wilson. Das 25 ou 30 pessoas que viu no mar nessa tarde em que “as ondas nem estavam muito grandes para a Nazaré”, apenas o brasileiro reconhecido pela proeza em enfrentar o indomável deixou lá a vida.

Foi a primeira pessoa a frenar-nos o espanto com um choque de realidade, uma enorme chapada de consciencialização do perigo que mantemos dormente com o nosso pasmo por façanhas corajosas, mas, assim como acelerar em corridas no alcatrão, escalar paredes sem corda ou saltar do topo de montanhas com pára-quedas, sempre existirá na Nazaré. Nos seus dias rabugentos e mal-humorados, a Praia do Norte não é lugar para humanos ganharem à natureza apesar de todas as vezes em que a enfrentam e fazem o possível, que é esquivarem-se dela com a adrenalina que só um vislumbre tão próximo do que pode ser o nosso fim dará.

Peter ‘Joli’ Wilson viu a tragédia de Márcio Freire mostrar o que nenhum peregrino que povoa o cume do farol do Forte S. Miguel de Arcanjo, esse olho rochoso sobre a Praia do Norte, se desloca para ver quando chega mais um dia de enormes ondas a banharem-na. Mas, conversando com ele, depreende-se a razão para a alcunha do australiano que visitou a Nazaré, pela primeira vez, em 1989, ainda a internet era palavra sabida por poucos, quanto mais a fama daquele lugar por ter ondas monstruosas: “jolly” é alegre em inglês e o fotógrafo, confesso adorador de Portugal que só não fica por cá mais tempo por o visto ter a validade de 90 dias, foca-se de novo na luz que se pode ver após a tragédia.

Tenta relativizá-la, porque “número de surfistas que a cada dia entram no mar em todo o mundo, face ao número de fatalidades que resultam desse surf, dá uma percentagem muito, muito pequena”. Peter Wilson já fotografou em Jaws, Teahupo’o ou Cloudbreak, ondas nada tímidas em tamanho no Havai, Taiti e nas Ilhas Fiji onde surfistas também brincam com a vida. Ele aponta-lhes a lente desde o raiar dos anos 70, antes dos 90 criou a própria empresa de banco de imagens e passar-lhe os olhos é passear num histórico acervo do surf - desde as vestes à ‘hippie’ dos primeiros surfistas, a um Kelly Slater adolescente - que agora conta com uma galeria dedicada a Márcio Freire. Ao momento “muito pesado de testemunhar”.