Quinhentos e cinquenta e dois dias depois do ataque à Academia de Alcochete, que provocou ferimentos graves em funcionários, técnicos e jogadores do Sporting, vai começar o julgamento dos 44 acusados de planearem e executarem a invasão. O Tribunal do Monsanto, construído em Lisboa de propósito para julgar os membros do grupo terrorista FP-25 de Abril, vai ser o palco de uma luta que se prevê intensa entre o Ministério Público (MP) e a defesa dos suspeitos.
A primeira sessão está marcada para 18 de novembro, e a juíza Sílvia Rosa Pires já reservou a sala grande do tribunal — onde Otelo Saraiva de Carvalho foi condenado a 15 anos de prisão por ter fundado a associação terrorista — para 24 sessões, pelo menos até 31 de janeiro de 2020.
Bruno de Carvalho, ex-presidente do Sporting, é o principal arguido do processo e está acusado não só da autoria moral do ataque e de o ter instigado, como também do crime de terrorismo. Durante a fase de instrução — uma espécie de prejulgamento em que as defesas dos arguidos tentam desacreditar os indícios recolhidos pela investigação e pelo MP — os advogados tentaram fazer cair este crime, o mais grave que está imputado aos arguidos, com o argumento de que terrorismo é “um exagero” para a situação em causa. No entanto, quer o Tribunal da Relação de Lisboa, que apreciou vários recursos, quer o juiz de instrução Carlos Delca concordaram com a posição da procuradora Cândida Vilar e os 44 arguidos vão mesmo ser julgados pelo crime de terrorismo. Só por isso este julgamento já ficaria nesta história. Mas também é a primeira vez que um presidente e um grupo organizado de adeptos é julgado por crimes alegadamente cometidos contra o próprio clube.
Durante a instrução ficou claro que apesar de negarem ter batido nos futebolistas ou nos técnicos do Sporting, nenhum dos acusados negou ter estado na Academia o que foi suficiente para sustentar a acusação do Ministério Público, que os responsabiliza pelas agressões a jogadores como Bas Dost (atacado com a fivela de um cinto), William Carvalho (esmurrado), Daniel Podence (esbofeteado e enfiado num cacifo), Petrovic (socos e cinto), Acuña, (socos e pontapés), Bataglia (socos e levou com um garrafão de água) e Misic (agredido com um cinto) e o treinador Jorge Jesus, agredido na cara também com um cinto. No entanto, como a esmagadora maioria estava de cara tapada, e como deflagraram tochas no interior do balneário onde ocorreu a maior parte das agressões, o MP não conseguiu imputar a nenhum dos arguidos uma agressão em concreto. E num caso recente — agressões de polícias a um adepto do Boavista — isso foi suficiente para absolver os arguidos. A defesa de Bruno Carvalho pediu ao tribunal que autorizasse uma reconstituição do ataque precisamente “para saber quem fez o quê”.
Valter Semedo foi o único identificado e é suspeito de ter agredido a soco Rodrigo Bataglia e William Carvalho. As impressões digitais de dois arguidos foram detetadas no garrafão usado para agredir Bataglia.
A maioria dos 44 arguidos já esteve em prisão preventiva mas agora só dois estão na cadeia: Nuno “Mustafá” Mendes, líder da claque, e Elton “Aleluia” Camará, um operacional que violou as regras da prisão domiciliária e por isso foi novamente preso. Todos os outros foram libertados ou estão em prisão domiciliária. “Estas medidas podem gerar uma grande empatia entre o meu cliente e outros deste caso”, assume Melo Alves, que defende um dos arguidos mais jovens. O Expresso sabe que essa empatia poderá levar a uma mudança de estratégia generalizada dos agressores de Alcochete que durante o julgamento poderão mesmo vir a confessar parte dos crimes. “É expectável que venham a assumir que combinaram o ataque via WhatsApp para irem a Alcochete falar e discutir com os jogadores. E que tudo se descontrolou com atos de violência”, conta uma fonte do processo. “O meu cliente contou tudo desde o primeiro momento: combinou ir lá, esteve lá, mas não agrediu ninguém. E esteve um ano preso por causa disso”, diz Miguel Matias, que defende um rapaz agora com 20 anos.
Já será menos provável que envolvam o ex-presidente do Sporting na autoria moral do ataque. Ainda assim, Bruno de Carvalho terá de explicar a razão da troca de seis SMS com Fernando Mendes, ex-líder da claque durante aquele período conturbado. “Este é o ponto mais fraco da defesa do ex-presidente”, acrescenta esta fonte. O MP tem um problema semelhante: não tem uma única prova direta — um SMS, uma escuta ou um testemunho — do envolvimento de Bruno de Carvalho.
Bruno de Carvalho, o presidente descontente
“MENINOS MIMADOS, ENTÃO VAMOS RESOLVER”, Bruno de Carvalho explodia assim, em maiúsculas, no Facebook, depois de uma derrota contra o Atlético de Madrid, em abril de 2018. Para o MP, esta afirmação “visava determinar os adeptos à prática de atos violentos”, uma vez que o ex-presidente já mantinha um conflito aberto com três dos principais futebolistas da equipa: Rui Patrício, William Carvalho e Marcos Acuña, a quem responsabilizava pelos maus resultados da equipa e pelo facto de quererem ir para outros clubes. Dias depois, participou numa reunião na “casinha” da Juve Leo, no Estádio de Alvalade, com Nuno “Mustafá” Mendes, Tiago “Bocas” Silva e outros dirigentes da claque em que terá dito “façam o que quiserem”. A procuradora Cândida Vilar diz que se trata de uma “determinação” para as agressões que se viriam a verificar cerca de um mês depois. Quando foi ouvido na fase de instrução, o ex-presidente assumiu a autoria da frase mas deu-lhe outro sentido: “Façam o que quiserem era sobre as tarjas e se podiam levar tarjas de incentivo ou de exigências para o estádio.” O advogado Miguel A. Fonseca usou mensagens trocadas por elementos da claque com insultos contra Bruno de Carvalho para defender que o ex-presidente seria “o próximo a levar no lombo” e que a acusação, sem provas diretas que o liguem ao ataque, “é uma humilhação”.
Cândida Vilar, a acusadora
Foi por decisão de Maria José Morgado, então PGR distrital de Lisboa, que este caso foi entregue a Cândida Vilar e não a um procurador de Almada, como seria natural. Vilar já tinha experiência com casos potencialmente explosivos, como o dos neonazis, a máfia da noite de Lisboa ou o das mortes no curso dos comandos e mais uma vez não hesitou em chegar ao topo da hierarquia, acusando Bruno de Carvalho, então presidente do clube, da autoria moral do ataque à Academia; e transformando o que podia ser um caso “vulgar” de agressões num processo de terrorismo. O caso já lhe valeu dois dissabores: uma multa de 15 dias de salário imposta pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) por ter declarado no despacho de acusação que a investigação não estava concluída porque a PJ não tinha feito a peritagem ao telemóvel de André Geraldes, ex-team manager do Sporting. Segundo o CSMP, a magistrada devia ter mandado extrair uma certidão para investigar Geraldes num processo à parte, mas em vez disso arrolou-o como testemunha. Depois disso, interrogou Fernando Mendes, ex-líder da claque, com modos bruscos. O áudio foi divulgado e Cândida Vilar foi alvo de mais um processo disciplinar que ainda está a decorrer. Não será ela a fazer o julgamento que foi entregue à procuradora Fernanda Matias.
Fernando Mendes, a faísca
O ex-líder da Juve Leo — saiu mas recebe uma avença mensal fixa, diz o MP — terá desencadeado o ataque à Academia com uma frase dirigida a Marcos Acuña no Aeroporto Cristiano Ronaldo, na Madeira, depois de uma derrota contra o Marítimo: “Eu estou por tudo. Falamos em Alcochete.” Fernando Mendes desentendeu-se com o jogador argentino e, de acordo com o MP, só não o agrediu no aeroporto porque foi impedido pelos outros jogadores e polícias à civil. Acuña terá chamado “filhos da puta” aos adeptos que o ofenderam no final do jogo, e Mendes, que tinha perdido a mãe há pouco tempo, não perdoou. Foi um dos que não taparam a cara quando invadiram a Academia e não terá entrado nos balneários onde se deu a maioria das agressões. Foi a ele que o treinador Jorge Jesus, também agredido, recorreu para tentar evitar as agressões: “Estão a bater nos jogadores, Fernando.” Mendes retorquiu: “A gente veio para falar, não foi para bater.” Foi retirado da academia num carro de um elemento da claque e por isso escapou à detenção. Na fase de instrução manteve que a intenção da claque era apenas falar com os jogadores, mas que a situação se descontrolou. Só foi preso meses depois do ataque, esteve em prisão preventiva e foi libertado depois de se saber que sofre de leucemia.
Nuno “Mustafá” Mendes, o líder
Número um da Juventude Leonina, tem cadastro pela prática de vários crimes e chegou a ser libertado num processo em que estava preso preventivamente por sugestão da polícia que o descreveu como um “elemento pacificador” da claque. Participou na reunião com Bruno de Carvalho em que terá sido decidido fazer o ataque a Alcochete, e o MP diz que foi ele a dar a ordem final, acusação que desmente. Não esteve em Alcochete e não falava pelo WhatsApp e, por isso, não há mensagens que o comprometam, apesar de os outros elementos se referirem constantemente às suas ordens, essenciais antes de qualquer ato. É um dos que estão em prisão preventiva porque a polícia apreendeu-lhe cocaína e está também acusado de tráfico de droga. O outro é Elton “Aleluia” Camará, que violou as regras da prisão domiciliária.
Tiago “Bocas” Silva, o operacional
Número dois da Juve Leo, foi ele, segundo o MP, quem administrou os grupos de WhatsApp em que o ataque foi planeado e foi o comandante operacional da invasão. Era visto como um exemplo pelos companheiros devido aos “seus atos agressivos” e terá sido ele a confirmar a hora do treino e a planear os locais de encontro e a hora da invasão. “É para varrer todos”, disse numa mensagem apanhada pela polícia. “Temos de ir 100.” Estava com Fernando Mendes no momento do desentendimento com Marcos Acuña e teve de ser travado pela polícia para não agredir o futebolista argentino. Foi reconhecido pelo diretor de segurança de Alcochete como sendo um dos que invadiram a Academia.
Bruno Jacinto
O arrependido
Foi membro da Juventude Leonina e era o oficial de ligação com a claque quando o ataque ocorreu. Foi apanhado numa escuta a dizer que “era bem malhado neles” [os jogadores], e o MP diz que é um dos autores morais do ataque porque sabia o que ia acontecer e nada fez para o evitar. Já depois de ter sido preso, disse ao MP que “Mustafá” lhe tinha dito que havia “luz verde” do presidente Bruno de Carvalho para a invasão. Para se defender, argumenta que avisou por SMS André Geraldes de que a Juventude Leonina se preparava para invadir Alcochete. Mas que nunca teve qualquer resposta. Só não explicou porque é que não avisou as autoridades.
Frederico Varandas, a testemunha
O atual presidente do Sporting era médico do clube e estava na Academia quando se deu o ataque. Foi ele a socorrer os jogadores logo nos primeiros instantes e é uma das testemunhas mais importantes para o MP porque não só estava no local do crime como é capaz de avaliar a real gravidade das agressões. Foi o presidente eleito depois da destituição de Bruno de Carvalho pelos sócios do Sporting e entrou numa guerra surda contra as claques que culminou com o fim do protocolo com o clube, o encerramento da “casinha” e a declaração de ilegalidade da Juve Leo e do Diretivo XXI por parte do Governo.