FC Porto

Sérgio Conceição e a sua história de saídas conturbadas dos clubes

Ao fim de sete anos, o treinador saiu do FC Porto de uma forma polémica, em conflito com Vítor Bruno, um dos seus adjuntos. É mais uma despedida de um clube envolta em polémica, fosse por alegados desentendimentos entre Sérgio Conceição e dirigentes ou bate-bocas públicos: aconteceu no Olhanense, na Académica (à posteriori), no SC Braga e no Nantes

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Sérgio Paulo Marceneiro Conceição é o treinador mais bem-sucedido da história do FC Porto, facto inegável, bastará ir ao museu no Dragão e ter os olhos encadeados pelo brilho: lá moram 11 troféus colocados a reluzir pelo homem que em sete anos devolveu o clube às lides vencedoras. Sete épocas e 378 jogos (também um recorde no rasto que deixa nos dragões) depois, o técnico sai pouco mais de um mês contado da derrota de Jorge Nuno Pinto da Costa nas urnas. Ao pôr-do-sol do presidente que o contratou, Conceição fez seguir o seu.

A sua pegada no clube, medida a quente ou arqueologicamente mais tarde, terá traços indesmentíveis: Conceição teve períodos em que fez muito com pouco, espremeu as laranjas de plantéis a que o fair-play financeiro da UEFA impôs contenção, chegou aos quartos de final da Liga dos Campeões e ganhou três campeonatos. A marca de água do seu FC Porto foi a competitividade moldada por um treinador cujo lado estratégico se evidenciou, em vários jogos, para a equipa prevalecer em momentos fulcrais ao longo das sete temporadas.

Mas, agora, Sérgio Conceição vai embora a transparecer uma imagem de desgaste e, reflexo de outros tempos da sua carreira, envolto em alguma polémica começada a germinar nos últimos meses - de novo, por causa das eleições que agitaram a vida recente do FC Porto. Porque, em janeiro, o treinador disse “isolamo-nos dessa vida eleitoral”, em fevereiro “não era preciso dizê-lo, porque se sabe”, mas também disse “que não é no final de um mandato que se vai renovar com um treinador” para, em abril, dois dias antes do sufrágio, prolongar o contrato com o clube e apertar a mão a Pinto da Costa. “Não estou agarrado ao lugar”, frisou ainda.

Conceição sai do FC Porto porque deu uso a uma cláusula incluída na recente renovação que lhe permitia fazê-lo sem encargos para o clube - mas sem que o clube o pudesse fazer - e com uma polémica bastante pública: acusando implicitamente Vítor Bruno, um dos seus adjuntos de sempre, de “traição” e “quebra de confiança”, após alguns dos seus cinco filhos e a mulher terem criticado o técnico nas redes sociais por, alegadamente, estar em negociações com André Villas-Boas, o récem-eleito presidente, para ser o próximo treinador principal. A quem, subliminarmente, também criticou por falta de “um discurso de integridade e transparência”.

Sérgio Conceição afirma que “não foi por dinheiro” que chegou ao FC Porto, em 2017, quando aceitou vir receber menos do que auferia no Nantes, “e não é com dinheiro que quero sair”, acrescentou. Sente-se “desgastado e desiludido”, dizendo que “em breve” virá “a público contar a verdade dos factos”. Essa promessa é repetente no seu percurso de 13 anos enquanto treinador principal: assumiu-a, pelo menos, uma vez entre as quatro saídas anteriores de clubes que tiveram polémica à mistura. Esta é uma recoleção das despedidas conturbadas do técnico.

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Os primórdios em Olhão do “raçudo” Sérgio

A brilhantina a prender impecavelmente o cabelo, sem fios brancos lá no meio e um uso ainda parco da barba por aparar, a primeira vez de Sérgio de cognome “mister” chegou no Algarve, onde aterrou em janeiro de 2012. Ia o Olhanense a meio da sua terceira época seguida na I Liga, mais um a tentar fazer muito com pouco, quando Isidoro Sousa e a sabedoria do seu bigode estrearam Conceição como treinador. Ao 8.º lugar no campeonato em 2011/12 com um clube a contar os tostões, seguiu-se a venda de vários titulares, as receitas a ganharem na antecipação ao enrijecimento das costelas desportivas e o recém-técnico, aos poucos, a desgostar dos sinais dados por cada decisão dessas do presidente do clube.

Isso foi o escrito e badalado ainda nem a segunda temporada tinha arrancado. “Os problemas surgidos tinham a ver com divergências naturais, pois sendo o Sérgio Conceição um treinador muito ambicioso, essa ambição teria que ser controlada, face à situação financeira do Olhanense”, dizia Isidora Sousa, no calor do verão. “O treinador quer melhores jogadores, nós, direção, também queremos, mas, face à conjuntura atual, temos de ter muito cuidado, os pés bem assentes na terra, e perceber onde podemos chegar”, explicara à “RTP” antes desse ténue fumo expelido pelo cachimbo da paz, em dia de outro arrufo verbal noticiado após uma reunião entre presidente e capitães de equipa, interrompida pelo técnico.

Quando já se liam e ouviam mais títulos acerca de discussões sem cerimónia nos decibéis e nas vistas dadas - uma decorreu até diante dos adeptos, com Isidoro e Sérgio aos gritos no estádio do clube -, discórdias repetentes e treinos cancelados, foram precipitando a saída que aconteceria em janeiro de 2013. Ainda trintão e a apalpar os primeiros terrenos como treinador, a frontalidade de Sérgio Conceição colidia com o tema da falta de investimento e reforços decidida com quem acima dele estava. Poucos meses depois, com ele já na Académica, o técnico recorreu à justiça para reaver dois meses de salários em atraso após abdicar de meio ano de ordenados a que tinha direito por culpa de “tentativas frustradas” de resolver a questão a bem com a direção - criticando o presidente por “atentar” contra o seu “bom nome”.

Nem 10 anos volvidos e havia fumarada pacificadora, a confiar no trato público dado por Isidoro Sousa ao então treinador do FC Porto. “Era muito à frente em métodos de trabalho, raçudo, com aquele temperamento, mas no bom sentido. Na altura pedi informações a várias pessoas, que me deram as melhores impressões do Sérgio Conceição”, descreveu, em elogios deixados no “Record” sobre o homem capaz de “ter os jogadores na mão” e de os “conduzir ao pormenor”. O telemóvel de Isidoro Sousa irrequietou-se em vários outros momentos ao longo dos anos, por ocasião dos três títulos de campeão nacional alcançados pelo homem a quem ele deu a primeira volta ao carrossel dos treinadores. As suas palavras saudaram sempre Sérgio Conceição. A saída de Olhão não teve boniteza, ao contrário da impressão deixada.

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As águas passadas da Académica

O negro das camisolas da Académica fez vibrar o coração de Sérgio, em 2013 - e outra vez. Segundo mais novo de sete irmão, veio ao mundo em Ribeira Frades, aldeia perto de Coimbra onde a infância humilde o moldou. O convite do clube cheirou-lhe a casa. Antes de detetar essa fragrância que o seduziu com o chamamento para continuar a treinar na I Liga, o técnico já se desfizera em sentimento. “Embora não seja de Coimbra, como sabem, nasci numa aldeia aqui próxima, sinto este clube como meu. Houve guerras no meu percurso, respeito a instituição, que me ajudou muito, até me pagou os livros para estudar”, disse ele, ainda no Olhanense, durante uma conferência de imprensa que não serviu por inteiro de eulogia à equipa da sua terra.

Ainda em Olhão, essa ocasião de orador dirigiu-se, sobretudo, a José Eduardo Simões, o então presidente da Académica: “Quando foi inaugurado o estádio com o meu nome [em Taveiro, também perto de Coimbra], que não é meu, tem apenas o meu nome, comprei toda a bilheteira. Foram 60 mil euros que ofereci à Académica. O presidente da altura, para agradecer, deu-me um cartão de sócio honorário, que perdi passados uns anos. Mandei pedir outro, mas este presidente disse que este cartão não tinha validade.” Esse e outro episódio vincaram-lhe o coração: “É só um dos casos da falta de respeito por alguém que adora a Académica. Mais: no último dia de inscrições, há uns anos, quando o Domingos [Paciência] me queira, o presidente telefonou-me e fez de tudo para que a Liga fechasse e eu não fosse inscrito. São esses passos de artista que não gosto, foram-me prejudiciais e a Académica merece melhor que isso.”

Estas palavras nem há um ano repousavam quando Conceição virou treinador da Académica, ao sentar-se na “cadeira de sonho” e sanadas as divergências. O presidente consubstanciou as pazes, garantindo na apresentação do técnico de que iriam trabalhar com “confiança, estima, consideração e respeito pelo espaço de cada um”. Sérgio por lá ficou 13 meses, sem arrelias conhecidas e a emanar carinho por José Eduardo Simões na hora da despedida. “Possibilitou-me fazer aquilo que mais gosto no clube que mais gosto. Foi uma oportunidade inesquecível e uma experiência única”, escreveu, no verão de 2014, na prequela da mudança para Braga. A saída de Coimbra foi pacífica, a sequela da relação nem sempre.

Quando a Académica visitou os minutos na temporada seguinte, um caso judicial brotou de um arrufo acontecido no túnel de acesso aos balneários. A história, rezem relatórios de árbitros e da polícia da altura, conta que disseram a Sérgio Conceição que José Eduardo Simões o apelidou de filho de uma certa ofensa durante o jogo - até o terá mandado ir trabalhar - e o treinador interpelou-o no final, “confrontos físicos” incluídos e o troco dado em gritos: “Paga o que deves!” Além dos insultos, em causa estaria um salário e prémio por pagar do tempo em que o treinador estivera em Coimbra, que ele já reclamara no início de 2014/15. Ambos seriam castigados com processos disciplinares. Pelo menos de um lado, isso não criou um dique que obstruísse as águas da cordialidade no futuro.

O ano passado, instado a comentar uma divergência entre Sérgio Conceição e Jorge Nuno Pinto da Costa com base nas experiências passadas, José Eduardo Simões falou com decoro sobre o treinador “explosivo, sem ser um incómodo”, sem lhe dedicar críticas. “Podem chamar muita coisa ao Sérgio, mas uma coisa não podem negar: ele é uma pessoa de bem. Como todos nós tem os seus momentos menos bons e os seus momentos excelentes, mas as coisas compõem-se”, contou, à “Renascença”, deixando uma garantia - “O Sérgio Conceição que eu conheço não se põe casmurro.”

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Alegadas faltas de respeito e de apertos de mão em Braga

“Na sequência do procedimento disciplinar instaurado ao Treinador da Equipa Principal, Sérgio Conceição, e após cumprimento de todos os trâmites legais, a Administração da SAD decidiu, no passado dia 26 de junho de 2015, aplicar a sanção de despedimento com justa causa, pelo que, atualmente, o mesmo não tem qualquer vínculo para com a Sporting Clube de Braga – Futebol, SAD.”

O abrupto desfecho da história de Sérgio Conceição em Braga conta-se por comunicados, como o transcrito acima, ‘diz-que-disses’, SMS e alegações que pintaram o quadro litigioso a uma temporada que acabou com ele despedido, por justa causa, mas na qual desportivamente se atingiram os objetivos, como salvaguardou o clube. Após a final da Taça de Portugal onde os minhotos venciam o Sporting, por 2-0, a 10 minutos no relógio ir dormir, deixando-se empatar e mais tarde perder nos penáltis, António Salvador endereçou-se aos adeptos: “Reconhecendo que o futebol é fértil em surpresas, também sei que na maior parte das vezes a surpresa é fruto da incompetência e admito que não fomos suficientemente competentes para guardar tudo o que tínhamos sabido construir.”

Ao ler a reação do presidente do SC Braga à derrota no Jamor, o técnico enviou-lhe uma mensagem por telemóvel. “Muito bem, presidente. Fomos incompetentes… Boa maneira de sacudir a água do capote… A partir de agora podem livremente procurar alguém com competência”, revelou, então, o clube. Depois, já nas instalações do clube e na ressaca da época, Sérgio Conceição terá recusado cumprimentar Salvador diante de jogadores e staff, enquanto “lhe dirigiu insultos e ameaças de agressão de uma forma desabrida e tempestuosa”. Novamente, tudo contado por comunicados.

Ao processo disciplinar seguiu-se o despedimento devido aos comportamentos que “revelaram uma inadmissível falta de lealdade e de respeito por parte do treinador” ao SC Braga e “aos seus valores, à sua estrutura diretiva e ao presidente António Salvador”. O clube não se poupou nas críticas, denunciando o “carácter conflituoso, autoritário e agressivo” de Sérgio Conceição, “exibido em diversos episódios ao longo da temporada”. O treinador defendeu-se pela mesma via, no caso através do seu advogado, dizendo-se de “consciência perfeitamente tranquila” apesar de acusar o clube de pintar “uma versão dos acontecimentos deturpada, falsa e profundamente atentatória da [sua] dignidade pessoal e profissional”. Vítima de “um ataque brutal”, profetizou que “a verdade” viria “ao de cima” e garantiu que iria “limpar o seu bom nome”.

Quatro meses volvidos, já com ele em Guimarães, a treinar o rival Vitória, nasceu o acordo em tribunal para lhe dar razão: a justiça obrigou o SC Braga a pagar €87 mil de indemnização, abaixo do milhão de euros reclamado, de início, por salários devidos (Conceição ainda tinha um ano de contrato por cumprir aquando do despedimento) e danos morais. Noticiou-se que o treinador e clube reconheceram exageros e acenaram a bandeira da paz. E Sérgio falou: “A indemnização e o dinheiro para mim valem zero. Aquilo que era importante é o que ficou registado no documento. Para mim, para a minha família, para os meus filhos, que durante estes quatro meses viveram momentos que não desejo a ninguém. Vê-se agora que ocorreram apenas equívocos e situações que podiam ter sido evitadas. A minha maior satisfação nunca foi o dinheiro, nem nunca será, mas sim repor aquilo que aconteceu verdadeiramente, que foi zero do que foi escrito e dito. A verdade, um dia, será conhecida.”

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A estupefação em Nantes

Feita uma temporada em Guimarães, de onde saiu por vontade própria e o Vitória a agradecer-lhe pelo “excecional envolvimento” com o projeto, “bem como a sua lealdade permanente”, Sérgio Conceição rumou a Nantes. Tirando o pó ao francês que aprendera em Liège, na Bélgica, no outono dos seus tempos de chuteiras calçadas e no início da carreira como treinador - lá começou enquanto adjunto -, resgatou o clube gaulês da zona de despromoção para aproveitar o embalo e acabar 2016/17 no sétimo lugar do campeonato. Com títulos de campeão na sua história, vivia-se uma renovada pujança no clube. Assente nesse sucesso, renovaria contrato em abril, até 2020, ainda com a época a terminar.

Até que, vendo-se na iminência de ficar sem treinador, surgiu a sedução de Pinto da Costa, a cortejar Sérgio Conceição com a mudança para o FC Porto.

O interesse em regressar a Portugal causou comichão a Waldemar Kita, presidente do Nantes. “Tenho a confirmação de que o Sérgio quer sair, estou estupefacto. Não o vou deixar. Não percebo o porquê. Ele está a abandonar-me. Já tínhamos tudo planeado para a próxima época”, disse então, em entrevista ao “Ouest-France”, uma de várias em que manifestou publicamente o seu desagrado. Quando já via Conceição à distância, com ele no FC Porto, o dirigente não descansou: “Foi ele que não respeitou moralmente a palavra e o seu contrato. Que esperou que o seu antecessor no FC Porto fosse despedido para ir bater à porta do presidente [Pinto da Costa]. Quis assinar connosco para ter uma segurança e foi-se embora, depois de ter ganhando notoriedade graças ao Nantes.”

O treinador defendeu-se, à revista “Dragões”, com uma promessa tida entre ele e Waldemar Kita de que o Nantes não o impediria de sair no caso “aparecesse um clube de maior dimensão”; o presidente atestou, ao “L’Équipe”, tal palavra, mas que só se aplicaria a partir de 2018; Conceição disse não entender tamanha polémica: “Não fiz nada de grave, não enganei ninguém e fui completamente direto e correto com as pessoas. Depois de saber do interesse do FC Porto, no dia seguinte de manhã estava em Nantes, para dizer isso cara-a-cara ao presidente.” O técnico escudou-se nas palavras ditas - o “compromisso verbal” com o líder do Nantes valia “tanto ou mais do que uma cláusula ou uma folha assinada”. Sérgio acabaria mesmo por aterrar no Dragão face à “vontade irreversível” de mudar de ares.

Mais tarde, o treinador admitiria à revista “France Football” que “a saída do Nantes não foi bonita, especialmente por causa do que foi dito”, juntando a confissão de um problema de saúde da mulher igualmente ter ajudado ao retorno ao Porto. Fez um convite a Waldemar Kita para ir a Portugal e fazerem as pazes. Se o dirigente aceitou, não se sabe, mas enterrou o machado. “Quase não voltámos a falar desde que saiu. Trocámos umas mensagens há uns meses, mas não passou disso. Para mostrar que não ficaram rancores, quando estiver com ele mande-lhe um abraço da minha parte”, diria, um ano depois, em conversa com “O Jogo”.