Uma final de um Mundial é daquelas ocasiões que não precisa de grandes enfeites ou acessórios para ser uma ocasião. Além da tensão e magia em redor da atribuição da taça que representa o domínio do jogo mais amado do planeta, acontecer só de quatro em quatro anos (saudações a Infantino e Wenger e restantes defensores de Mundiais de dois em dois anos) dá-lhe uma noção de excecionalidade, de raridade, de 90 minutos (ou 120, ou 120 mais uns penáltis) que têm de ser saboreados porque só voltarão algum tempo depois.
Ou nem sabemos se regressarão, porque a dificuldade de a atingir leva a que possa ser a última vez que um adepto veja lá a sua equipa ou que um jogador a dispute. Seja com quem for a final, há uma ideia de “jogo dos jogos” à volta dela.
Sabido tudo isto, é inegável que a final do Catar 2022 é especial. As vitórias da Argentina contra a Croácia e da França contra Marrocos construíram uma ocasião cenicamente quase perfeita.
De um lado, a paixão e emoção alvicelestes, que invadiram o Catar numa missão quase mitológica de recuperar o título guiados pelo génio vivo que está a ser observado no céu pelo génio morto, no primeiro Mundial na ausência deste; do outro, a demonstração de força do mais perfeito sistema de formação de talento em série do futebol moderno, linha de produção capitalista em massa que gera artistas da bola, capaz de chegar a quatro finais de Mundiais ou a duas de Europeus em 24 anos, sobrevivendo às lesões de vários craques para, mesmo assim, estar no Catar com um plantel recheado de soluções.
Mais do que isto, neste jogo coletivo que consagra individualidades, é a final de Messi e Mbappé. Do último Mundial de Leo, aquele em que se transformou em Lionel Armando Messi, maradoniaziando-se, sendo mais icónico que nunca numa missão quase obcecada para chegar ao Santa Graal, ao pedaço de glória que lhe falta; do segundo de Mbappé, que pode cometer o insulto de chegar aos dois títulos antes dos 24 anos, feito só com precedentes no rei Pelé.
Mas tanto simbolismo e encanto não nos podem cegar. Há uma evidência desconfortável nesta final.
A 23 de novembro de 2010, o Palácio do Eliseu foi palco de uma reunião entre Nicolas Sarkozy, então presidente francês, Tamim bin Hamad Al-Thani, à altura o príncipe herdeiro do Catar, e Michel Platini, líder da UEFA. Muito se escreveu sobre aquela noite, mas o que é factual é que os meses seguintes começaram a mudar o tabuleiro do futebol internacional, primeiro com a atribuição do Mundial 2022 ao Catar, depois com a compra do PSG.
O Catar sonhava com a propriedade de um clube recheado de glamour numa capital europeia que servisse de palco para a sua influência; queria acolher uma grande competição que levasse a Doha um cortejo dos maiores líderes mundiais; desejava ter estrelas galácticas como reclames andantes das maravilhas catarenses, quais modelos em lojas de luxo dos Campos Elísios.
No domingo, esta trilogia estará completa. A final do Mundial será o espetáculo no Catar em que os dois artistas principais são trabalhadores principescamente pagos pelo Catar, através da Qatar Sports Investments, uma subsidiária do fundo soberano do estado do Catar que detém o PSG.
O planeta de olhos postos em Doha a vibrar com as estrelas que, semanalmente, promovem o Estado do Médio Oriente. E, nessas exibições regulares com a camisola do PSG, Messi e Mbappé têm muitas vezes “Qatar Airways” escrito nas camisolas. A mesma companhia que beneficia de um acordo, assinado em outubro, entre o Catar e a União Europeia, o qual está agora sob escrutínio no âmbito do escândalo no Parlamento Europeu. “Concentrem-se no futebol”, diria Wenger.
Domingo teremos a primeira de Messi ou a segunda de Mbappé? Para o Catar, a vitória neste Mundial imoral, marcado pela corrupção e manchado de sangue, já está garantida.
Histórias do dia
Jogos do dia
E quando a vida era feita de quatro encontros do Mundial por dia, começando logo às 10h de Lisboa? Pois é, essa rotina que só durou sete dias parece já coisa distante. Hoje, tal como ontem, não há jogos. A ação regressa amanhã, sábado, com o não muito aguardado duelo de atribuição do terceiro lugar entre Croácia e Marrocos, aperitivo pouco saboroso para a final de domingo. Consulte aqui todos os resultados do que já se disputou.
A foto
O Mundial 2022, este acontecimento sobre o qual se foi falando por tantas razões ao longo de mais de uma década, este torneio que chegou a parecer produto de um filme distópico, está a chegar ao fim. Faltam somente dois dias. Continue a acompanhar tudo sobre o que se passa no Catar no site da Tribuna.
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