Tribuna Eventos - Mundial 2022

Gosto muito de você, leãozinho

Sem headphones nos ouvidos, mas portador daquele seu ar esbaforecido, com um cotovelo sobre a mesa e o outro braço para trás, quase à vontadinha na conferência de imprensa que preteria face às suas sessões de Twitch sem mediadores, Luis Enrique rendeu-se ao esparguete humano: “Surpreendeu-me agradavelmente o número 8, não me recordo do nome, lamento. Madre mia, de onde saiu esse muchacho? Joga muito bem”. Os gestos importam para sobrelevar o elogio, pois, como uma vírgula que serve para exclamar, o selecionador da Espanha dos mais de 1.000 passes para um remate na baliza fez a mão cortar o ar enquanto baixava o queixo em toda uma postura de ‘sim senhor, tiro-lhe o chapéu’.

Referia-se a Azzedine Ounahi, o médio a viver no limiar do escanzelado e a jogar à beira do majestoso, com o corpo a parecer um trapo pendurado numa cruzeta de pé, sem matéria que o encha de tão magro que é. Com braços e pernas austeros em músculo, o rapaz de 22 anos lá correu ontem, e muito, mais contra franceses do que atrás deles, feitiço virado contra quem o magica. Os marroquinos, sensação ambulante deste Mundial, tiveram a bola e o protagonismo aos quais renegaram intencionalmente até às meias-finais e sucumbiram à falta de ideias que fossem suficientes para furar uma defesa com nomes e suplentes a morarem em equipas de topo.

Longe esteve a culpa de residir em Ounahi, enérgico sinal luminoso da mística de Mundiais passados, dos tempos prévios à internet, aos highlights do YouTube, a Championship Managers e a programas de scouting para os melhores lances das divisões secundárias da Mongólia dependerem de uns cliques. Quando o torneio era uma fonte descobridora de jogadores meio-desconhecidos, vindos de partes do mundo que não do eurocêntrico núcleo do futebol, nos idos anos 70, 80 e até 90 em que até jogar por uma equipa a batalhar para não descer de divisão em França era andar pelas brumas da bola.

Além do fait-divers de o primeiro nome rimar com o de um excelso antigo vencedor de Bolas de Ouro, a forma como Azzedine Ounahi se fez o pulmão do meio-campo da surpreendente seleção de Marrocos, jogando com a sua poção de correrias incansáveis com fina técnica nos pés, livrando-se das piursas reações de quem pretendia recuperar as bolas que ele acabara de roubar, é a maior surpresa individual deste Mundial. Há um ano ainda jogava no US Avranches da terceira divisão gaulesa, hoje está no Angers, último classificado da Ligue I onde regista zero golos e assistências esta época e o presidente já veio dizer que dificilmente o vê a passar lá o Natal.

Ounahi é um dos esteios dos incríveis ‘Leões do Atlas’ e do seu estilo de cerrar fileiras para rapidamente atacarem ao recuperarem a bola, um estilo mais reativo do que defensivista, mais do que ciente de como podem usar o que têm contra o que todos os adversários que enfrentaram, à exceção de um, tinham a mais - fora o Canadá, foram eles Croácia, Bélgica, Espanha, Portugal e enfim França. Só os campeões do mundo os derrotaram para irem jogar a sua segunda final consecutiva. Nas eliminatórias, Azzedine Ounahi terá sido o melhor marroquino em todas as partidas, pelo menos um dos dois melhores foi.

Na bonita história da seleção da diáspora que uniu as esperanças africanas e árabes, indo mais longe do que nunca, Ounahi é um dos somente 12 jogadores nascidos em Marrocos (entre 26 convocados). Felizmente ainda o veremos no sábado, na partida para decidir o 3.º e 4.º lugares do Campeonato do Mundo, encontro que discute o que muitos consideram ingrato, inglório e irrelevante por ser algo parecido a dourar um jogo a feijões. Muitos outros também vão perdendo tempo com a fita métrica dos egos, perguntando quem conhecia ou não conhecia Azzedine antes deste Mundial, como se isso importasse para algo. Eu não conhecia, e ainda bem. A boa-nova é todos o conhecermos agora, prova de que o Mundial dos tempos modernos ainda é capaz de desvendar surpresas.

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Entristeçamos de vez pelo facto de já só nos restarem duas partidas neste Campeonato do Mundo, uma delas visando a inglória luta pelo terceiro e quarto lugares, no sábado. No dia seguinte teremos a ansiada final.

A foto

Eis uma fileira de alegres jogadores franceses a correrem na nossa direção, em festa por terem garantido a segunda presença seguida na final do Mundial.
Jam Media/Getty

O primeiro Mundial invernoso está quase a acabar e com ele irá esta newsletter, que continuaremos a manter diária até ao dia seguinte à final. Até lá, também continuaremos de olho no torneio no site da Tribuna. Seja onde for, obrigado por nos ler e acompanhar.

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