Quando se viu perante um ruck encostado à linha lateral, apetitoso devido a tamanho descuido adversário, Rafaelle Storti viu uma aberta onde agnósticos do râguebi terão visto uma mera molhada de gente. Não ele, ostentador de um bigode à portuguesa que se apressou, cheio de ratice, a bigodear os matulões das Ilhas Fiji para se esgueirar a corpos e correr em direção à área de ensaio. Quando virou a cabeça ao lado e procurou apoio perante uma inevitável placagem, tinha Rodrigo Marta bem à sua beira, pronto a receber a oval mais quente que nem por um momento escaldou nas suas mãos. O salto dele para o ensaio, de asas abertas e pose desafiante, colidiu contra a feição que tinha ao levantar-se da relva.
Quase atónito, os olhos inundados de incredulidade, Rodrigo Marta demorou um segundo, quiçá dois, a deixar a alegria desmanchar-lhe a cara. Já de pé, levou uma palma à testa: acabara de marcar o ensaio que, ainda dependente do sucedâneo e bem-sucedido chuto aos postes de Samuel Marques, daria a Portugal a primeira vitória num Mundial de râguebi. Aí ele fechou os olhos, absorvendo a realidade. Antes, recebera o passe vindo das mãos de quem conhece “desde os seis anos” e com o treinador calvo de tanto pensar em râguebi a gritar, lá de cima, “passa a bola!”, suspeitando que Storti tenha ofertado Marta com a oval por jogarem juntos há tanto tempo.
Um par de minutos mais tarde, a colateral dessa antiga amizade fê-los correr esbaforidos pelo campo e a saltarem para o colo do primeiro companheiro à vista, a encavalitarem-se uns nos outros, a abraçarem-se ensopados em lágrimas. Parecia que a seleção ganhara o Mundial e as aparências também iludem porque, às vezes, têm mais de realidade do que de parecença com ela: o 24-23 em Toulouse, contra os fijianos, foi uma seleção vinda de um meio tão pequeno, onde é fácil todos se conhecerem e privarem devido à magreza do seu universo, a conquistar o seu Mundial. Se parecia estar ali uma festa de apoteose monumental montada por quem, na prática, já estava eliminado do torneio que jogou somente pela segunda vez na história, era justificado.
“É a melhor noite da minha vida”, exultou Nicolas Martins, o gigante e luso-francês placador que joga de capacete posto e, finda a partida, às tantas desabafou, com demasiada simplicidade, como eles são “uma equipa de amigos de França e Portugal”. Mesmo que muito redutor no retrato feito, a descrição dele ilustra o contexto que acompanhou esta geração dos ‘Lobos’, que foi o mesmo, teimoso e insistente, de há 16 anos, apesar do fosso temporal entre as duas proezas. Sobretudo antes deste Mundial, foi repetitivo lembrar como esta seleção nacional representa um Portugal que tinha 4.852 praticantes federados em 2022, quase os mesmos registados (4.727) em 2008, no ano após a estreia no torneio. O país ainda é amador no râguebi apesar da grandeza dos jogadores que estiveram no Campeonato do Mundo.
A farra de todos eles, que continuavam extasiados já de banho tomado, a cantarem de alegria e a pularem para os ombros de quem tiveram ao lado durante quatro meses de concentração, resulta do vislumbre que proporcionaram a quem tenha querido ver o que eles podem alcançar se lhes deram condições para viverem como profissionais. Ficaram em quarto lugar do grupo, diante da Geórgia há muito profissionalizada e que tanto serve de escala de comparação, marcaram oito ensaios, somaram 64 pontos e fecharam a fase de grupos como a sexta seleção (entre 20) com mais quebras da linha registadas a atacar - melhor, por exemplo, do que África do Sul, Argentina, Gales e Austrália. Contra esse último par de adversários perderam por uma diferença de 20 pontos, frustrados por oportunidades desaproveitadas e precipitações próprias.
Não perderam porque são, ou foram, piores, nem por serem uns coitadinhos apequenados pelo mundo de diferença que à partida os separa, na base nacional do seu râguebi, dessas potências da modalidade.
Com cerca de quatro meses a viverem e treinarem como profissionais, os jogadores vindos, uns quantos, do campeonato nacional e poucos outros da II divisão de França, incluindo oito luso-franceses, esmeraram-se nas quatro partidas feitas no Mundial. Mas, observado agora melhor o feito, ainda a pouca distância do histórico apogeu que proporcionaram, no domingo, ao desporto português, o esmero dos ‘Lobos’ será assim tão surpreendente? Seria assim tão improvável uma prestação destas acontecer se a aposta neles fosse esta? Mais do que isso, suspeito que eles mostraram as altitudes às quais podem chegar se lhes proporcionarem as condições se não iguais, ao menos semelhantes à das outras seleções.
O que deixam neste Mundial são os efeitos secundários do esforço feito para se fingir, durante uns tempos, que Portugal leva o râguebi profissionalmente, intuindo em paralelo ao que a modalidade poderia ser no país onde existe esta relação esquizofrénica com a oval: a terra com tão poucos praticantes é a que transmite, em canal aberto, todos os jogos da seleção no torneio e motivou muitos milhares a viajarem a França para assistirem a jogos nos estádios. Se o râguebi seduz tamanha paixão, move esta massa de apoio e justifica a aposta de instituições (o Banco Santander é o patrocinador principal da seleção) com dimensão considerável, o que explica a estagnação amadora da modalidade dentro de portas?
Ver os talentosos e bravos portugueses a atacarem qualquer adversário partido da própria área de 22 metros, ziguezagueando por entre as probabilidades e fintando adversários mais experientes com o râguebi tão português de arriscar em jogar com a bola sempre em mãos, é a gritante prova de que há mais do que jeito para ser desta que a oval explode no país. Uma melancólica e taciturna voz de barítono cantou em Lisboa, este fim de semana, que “são os efeitos secundários que nos salvam” e repito-o porque os ‘Lobos’ foram salvos assim e beneficiaram, felizes e contentes e épicos, das colaterais de serem tratados como profissionais. Matt Berninger e os The National têm razão, mas só em parte, a canção é a ‘Graceless’, mas esta seleção jogou cheia de elegância e maravilhosa graciosidade.
E serão as consequências de um continuado tratamento deste tipo, de uma vez por todas, que os irão salvar.
O que se passou
Zona mista
“Voltarei a Alvalade porque o meu filho mais velho já é sportinguista e o mais novo é benfiquista, por isso vou andar a fazer piscinas na Segunda Circular. Terei sempre essa ligação e não há ligação mais forte do que ter um filho que já é sportinguista.”
Não que sobrassem provas por dar, mas, de novo, Rúben Amorim mostrou, pela mestria da oratória e com ausência total dos pruridos tão infernalmente futebolísticos que alimentam os ódios ocos da bola, que só na cabeça de quem vive no futebol para ter inimigos e climas de guerra em todo o lado é que vê mal em alguém trabalhar num clube quando cresceu a torcer pelo rival.
O que vem aí
Segunda-feira, 9
🎾 Continua o Masters 1000 de Xangai, penúltimo torneio desta categoria da época (5h30, Sport TV2). A prova joga-se a diário e termina no domingo.
⚽ O futebol profissional em Portugal só irá descansar brevemente no interlúdio dos jogos internacionais após o AVS-Penafiel (20h15, Sport TV1), a contar para a II Liga.
Terça-feira, 10
🎾 Se quiser madrugar, aí está mais Masters 1000 de Xangai (5h30, Sport TV2).
Quarta-feira, 11
⚽ É dado o primeiro toque na bola dos jogos na Europa agendados para a paragem de seleções com o eletrizante encontro amigável entre País de Gales e Gibraltar (19h45, Sport TV1).
Quinta-feira, 12
⚽ Regressam em força os jogos de qualificação para o Euro 2024 e destacamos estes: Croácia-Turquia (19h45, Sport TV3) e Espanha-Escócia (à mesma hora, Sport TV1).
Sexta-feira, 13
⚽ É dia de Portugal poder garantir já a presença no próximo Campeonato da Europa caso vença, no Estádio do Dragão, à Eslováquia (19h45, RTP1). Em simultâneo, acontece o apetitoso Países Baixos-França (Sport TV2).
Sábado, 14
⚽👩 Jogo grande no campeonato nacional feminino e em canal aberto: o SC Braga recebe o Sporting (15h) no seu estádio principal.
🏉 Desperta o Mundial de râguebi do seu descanso com as duas primeiras partidas dos quartos de final: o Gales-Argentina (16h, Sport TV) e o agregador de todas as atenções Irlanda-Nova Zelândia (20h, Sport TV).
Domingo, 15
🏍️ MotoGP: Grande Prémio da Indonésia, com Miguel Oliveira presente (8h, Sport TV).
🏉 Joga-se o outro par embates dos ‘quartos’ do Mundial oval: Inglaterra-Fiji (16h, Sport TV) e França-África do Sul (20h, Sport TV).
⚽ Mais encontros de qualificação rumo ao Europeu de 2024: um Noruega-Espanha (19h45, Sport TV1) pode bater com corações devido a Haaland, Odegaard e Aursnes a receberem o vício na bola dos nuestros vizinhos.
Hoje deu-nos para isto
Somos crianças, os nossos pais põem-nos a praticar desporto, escolhemos a modalidade ou escolhem eles por nós com um empurrãozinho da sua preferência e lá vamos nós, queira o jeito, a resiliência e a capacidade de trabalho, rumo a uma vida do nosso pico físico vivida a tentarmos ser os melhores com o que as nossas aptidões nos deram. Ensinam-nos aprumos técnicos, corrigem-nos abordagens, puxam para que demos o litro e deixam-nos à mercê dos monstros para os quais ninguém oferece preparação, então para mais se for uma costela de desporto que ponha a pessoa a competir sozinha.
Escrevo no plural indevidamente porque nada pesco sobre o que há dois anos atormentou Simone Biles ao ponto de fazer ruir a norte-americana, a ginasta que julgávamos inquebrável, invencível e imperturbável por a vermos de fora como se instituiu observar os humanos campeoníssimos no desporto. Ganhando tudo, tendo dinheiro para tudo, superando todos, temos por hábito percecionar quem é um primor de atleta como alguém imune a problemas tidos como mundanos. Isto é parvoíce, o problema maior é nem toda a gente ter noção disso.
Nos Jogos Olímpicos, a brilhante ginasta confessou o que tanto a atormentava e tão pouco é falado, e suspeito eu, ensinado, a quem é nutrido para ser grande no desporto - o medo, ela tinha medo de não aterrar um salto e esse medo, aliado à pressão competitiva e à vinda de fora que lhe atiravam para cima, fê-la tremer. Recusou-se a competir, tirou um tempo, parou pela sua saúde mental e voltou há poucos meses. No sábado, regressou com tudo aos Mundiais de ginástica para ser campeã do mundo do all-around pela sexta vez, pulverizando adversárias como antes o fazia e com um sorriso estampado na cara.
Aos 26 anos e após dois longe da competição, Simone Biles pareceu leve, menor no peso que acrescenta a ela própria e no que permite que tudo o que orbita à sua volta lhe acrescente. Chegou às 21 medalhas de ouro em Campeonatos do Mundo que juntou às sete olímpicas do metal mais precioso porque encontrou uma forma de saltar por cima dos demónios com que pouco nos ensinam a lidar. “Foi emocionante e significou muito. Tudo o que tive de fazer para voltar a este lugar, sentir-me confortável e confiante o suficiente para competir”, explicou, sem muito desvendar, a norte-americana que é das atletas mais dominadoras da história do desporto. Ela ganhou aos seus medos, ou pelo menos aprendeu a viver em comunhão com eles, porventura a maior vitória que já conseguiu.
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