A chuva que caía dos olhos de Katie McCabe tinha memória. As mãos e os joelhos que se abraçavam, numa agonia curvada, eram velhos contadores de relatos. Não se tratava de mero lamento, depois de a República da Irlanda somar duas derrotas, com Austrália e Canadá, que a afasta precocemente do Campeonato do Mundo, o primeiro desta nação.
A chuva que caía dos olhos de Katie McCabe, pura como a água dos mais imaculados lagos, regava-lhe as cicatrizes, ninhos de histórias sem fim. Basta começar pelo fim: esta canhota de ouro foi a capitã da seleção irlandesa na primeira aventura daquele país num Mundial. E foi dela o primeiro (e único) golo da Irlanda no torneio. Um golo olímpico, de canto direto, imagine-se. A celebração também foi especial, abrindo os braços para o povo que tudo testemunhava.
Dentro desse povo estarão muitas meninas que querem ser como ela, como ela quis ser Emma Byrne. Quando McCabe tinha 12 anos, ela e as companheiras de equipa do Templeogue United foram ver a Irlanda a Inchicore, um subúrbio de Dublin. Estavam talvez 50 pessoas, sendo que a maioria eram familiares e amigos das futebolistas. As raparigas foram ruidosas. Depois do jogo, Katie estendeu o bilhete implorando para alguma jogadora tatuar ali o seu nome. “Fiz os maiores olhos de Bambi de sempre”, contou recentemente no “The Players’ Tribune”.
Emma Byrne, uma histórica guarda-redes do futebol irlandês, assinou o papel de Katie e ela nunca mais esqueceu. Só queria chegar a casa para dizer ao pai que Byrne lhe oferecera um tesouro. O pai contou-lhe então que Emma Byrne jogava no Arsenal e apenas dois meses depois, num daqueles caprichos dos quais o futebol e o desporto nunca se vão cansar, Katie viu que estava a dar na televisão a final da FA Cup feminina. E, claro, o Arsenal venceu e Emma Byrne levantou o troféu. “Um dia adoraria fazer aquilo”, sussurrou para dentro.
Foi exatamente isso que fez, embora não tenha estado na ficha de jogo, em maio de 2016 contra o Chelsea de Ana Borges. Depois de passagens por St. Francis FC, Raheny e Shelbourne, chegou finalmente ao Arsenal em 2015… onde estava Emma Byrne, a cumprir a última de 16 temporadas ali.
Não muito tempo depois, com apenas 21 anos, o selecionador Colin Bell chamou-a para uma reunião. Era um convite para substituir Byrne como nova capitã da seleção. Depois de achar que se tratava de uma brincadeira, aceitou, transformando-se na mais jovem da história daquele território a colocar a braçadeira no braço. E aqui estamos: Katie McCabe é o rosto do futebol da República da Irlanda e naquele pedaço de tecido no braço esquerdo leva a mensagem “unidas pelos povos indígenas".
Esta foi uma daquelas épocas especiais: McCabe foi nomeada a melhor futebolista do Arsenal e conquistou um lugar no melhor 11 da Liga dos Campeões, guardando para a Women’s Super League o melhor golo do ano. Foi um tiro contra o Manchester City. A época culmina agora com uma estreia no já sentenciado Campeonato do Mundo para as irlandesas.
Depois do jogo contra o Canadá, na segunda jornada da fase de grupos, McCabe admitiu que tinha “o coração partido pelas raparigas” e que mereciam mais. As irlandesas complicaram a vida às canadianas, naturalmente favoritas, mas permitiram o empate nos derradeiros segundos do primeiro tempo, através de um golo na própria baliza. Mais tarde, Adriana Leon virou o marcador.
“Estávamos mais confiantes em nós”, admitiu na entrevista rápida no final, valorizando a energia do grupo. “Como capitã destas raparigas, sinto-me honrada e privilegiada. Estou tão orgulhosa, incluindo do staff. Foi um grande esforço conjunto. Vamos ficar com fome para mais. Queremos acabar bem com a Nigéria”, prometeu.
Katie McCabe, de 27 anos, nasceu em Kilnamanagh, tem nove irmãos e, como tantas futebolistas dos nossos tempos, começou a jogar com os rapazes no clube da terra onde abriu os olhos pela primeira vez e também no Crumlin. Segundo o “The Independent”, mudou-se aos 10 anos para uma equipa só de raparigas.
Na carta publicada no “The Players’ Tribune”, McCabe escreve um parágrafo que é um plantar de uma flor metafórico naquelas fissuras da alma onde se infltravam as lágrimas. “Para realmente nos perceberem, têm de conhecer os dias que tivemos sem dinheiro, sem respeito, sem nada. Quando não éramos remuneradas. Quando treinávamos em campos que pareciam batatais. Quando tínhamos que pedir emprestados fatos de treino e depois mudarmo-nos nas casas de banho dos aeroportos para os devolver.”
Não é brincadeira, reforçou. “Isso costumávamos ser nós. Como nós chegámos ao Campeonato do Mundo é a história do underdog irlandês. Ao longo de todo este percurso, cada uma de nós teve também uma viagem pessoal para chegar até aqui”, lembrou.
Com a camisola do Arsenal, a tal que outrora foi de Emma Byrne, conquistou vários troféus ao longo dos 119 jogos (19 golos). Pela República da Irlanda, são já 75 internacionalizações, sendo o golaço desta tarde o 19.º com a camisola verde.
O futebol enérgico e inconformista de Katie McCabe, fino e explosivo ao mesmo tempo, foi um dos cromos mais especiais deste Mundial até ao momento. O golo olímpico é um daqueles momentos que toda a gente vai falar por alguns anos. A jogada maradoniana, da direita para o meio, superando rivais como se fosse o vento, idem.
Na República da Irlanda há sempre quem não deixe cair no esquecimento que a equipa masculina se estreou no Campeonato do Mundo de 1990, conta ainda McCabe na carta já mencionada.
“Queremos que isto seja o nosso Itália 90. As raparigas irlandesas no [Mundial da] Austrália e Nova Zelândia 2023. Ahhh, lembram-se desse verão? É para isso que lutamos. Sei que vai haver muitas raparigas, na Irlanda, a verem-nos como eu vi a Emma Byrne. E eu só espero, com todo o meu coração, que algumas delas estejam sentadas e a pensar: ‘Um dia vou fazer aquilo’. Se isso acontecer, já ganhámos.”