A história é de 1988. O em vias de ser poderoso, o AC Milan de Arrigo Sacchi foi à Sérvia jogar a 2.ª mão da segunda eliminatória da Taça dos Clubes Campeões Europeus, já afamado pela pressão a todo o campo usando a sua organizada defesa à zona, mas ainda sem os dois títulos continentais seguidos a cunharem a sua lenda. O anfitrião era o Estrela Vermelha de Belgrado, que vestiu a arena a condizer: mais de 100 mil pessoas enchiam, de pé, as bancadas do estádio Rajko Mitic, batizado como Marakanã em honra do anfiteatro gigante do Rio de Janeiro. As gargantas berravam, as tarjas eram muitas, as tochas incandescentes.
Reza a história que era impossível respirar dentro do cerco do Estrela Vermelha. Os sérvios atropelavam os italianos, marcaram um golo, não os deixavam jogar, tinham-nos domesticados e sem fôlego. Mas, nessa noite, a natureza também quis entreter-se. Um denso nevoeiro encobriu o estádio, não se veria um elefante a um metro de distância se por lá andasse, oram as crónicas que o árbitro teve de suspender o jogo e Arrigo Sacchi apenas soube do golo feito por Dejan Savicevic, craque que levaria anos depois para Milão, minutos depois de entrar, porque alguém lhe disse no banco.
Não o vira por entre o nevoeiro, tal como não avistou o cartão vermelho a Pietro Virdis, cuja expulsão o treinador apenas conheceu quando chegou ao balneário e viu o jogador já vestido à civil. O grande e vindouro AC Milan, diria mais tarde Dragan Stojkovic, capitão daquele Estrela Vermelha, “nasceu no nevoeiro de Belgrado”. Um coche de verdade haverá na constatação: adiado para o dia seguinte, o jogo seria ganho nos penáltis pelos italianos, que conquistariam o torneio nessa época e na posterior antes de o Estrela Vermelha lhes suceder, em 1991.
Esse é um fado que José Costa ouviu ser contado, várias vezes, em Belgrado. O português, hoje adjunto do Dunquerque da segunda divisão francesa, trabalhou como analista de jogo no Estrela Vermelha em 2022/23 e conta à Tribuna Expresso a aura mítica que envolve o recinto. Salvo uns tímidos retoques e modernizações, mantém-se inalterado face à versão dos anos 90 e só as exigências da UEFA obrigaram o clube a deixar de ter lugares em pé ou a instalar torniquetes nas entradas, por exemplo. O aspeto e a construção antiquada permanecem, assim como o inusitado.
O Marakanã ainda tem os balneários fora do estádio e alojados noutro edifício. A ligação é feita por um apertado túnel de 240 metros, parte dos quais feitos por baixo da bancada norte que acolhe os Delije, o maior grupo de ultras que tem o seu nome inscrito, em cirílico, nas cadeiras. Caminhar de um ponto ao outro demora cerca de dois minutos e há troços hoje forrados com pinturas, outros com polícia de choque. São particularidades de uma arena, explica José Costa com saudade, que ainda é de “um futebol à antiga”. Não é que intimide ou meta medo, dá mais prazer do que receio.
Mesmo com os tempos de pirotecnia pesada, fumarada densa de tochas e tarjas a gabar a amizade com a Rússia que os Delije eram pródigos já algo postos para trás - ou, pelo menos, reservados para o campeonato sérvio -, o técnico português não esquece uma frase dita por um dos mais velhos funcionários do Estrela Vermelha com quem se cruzou: “Quando as pessoas nos visitam e pergunta onde é o museu, o museu é isto tudo.”
O Marakanã de Belgrado tem uma reputação que lhe precede. O Arrigo Sacchi, que lá foi jogar com o AC Milan no final da década de 80, até disse que foi o ambiente “mais hostil” que apanhou na carreira. Corresponde à realidade que encontrou?
O Marakanã é um estádio e lugar mítico, onde é muito especial jogar e é um grande palco do futebol europeu. Essa sensação do Arrigo Sacchi penso que nos dias de hoje já não é um ambiente tão agressivo, tão intimidatório.
Pois, naquela altura eram capazes de meter quase 100 mil pessoas dentro do estádio.
Não havia lotação, hoje há e, para as provas da UEFA, existem restrições muito apertadas, por exemplo, no uso de pirotecnia e coisas do género que são muito comuns no campeonato sérvio. Dentro das competições europeias há um quadro que regula mais aquilo que pode acontecer dentro do estádio.