Há jogadores do Real Madrid que olham para o céu, outros do Atlético fecham os olhos solenemente. Há quem, em ambas as equipas, olhe para as bancadas com um toque de ar incrédulo. Os futebolistas estavam abraçados em torno do círculo de meio-campo para o minuto de silêncio em memória de Franz Beckenbauer, um dos maiores da história da modalidade, falecido no domingo, antes do arranque da meia-final da Supertaça de Espanha, mas muita gente que assistia no Mrsool Park, em Riade, achou pertinente assobiar durante a homenagem. Não foram poucas muitas, nem todas, foram bastantes para se ouvir quase um uníssono de desaprovação.
O estádio que é a casa do Al Nassr, clube de Cristiano Ronaldo, na Arábia Saudita, manchou logo de início o que seria um jogo farto em animação, com 120 minutos de ação e oito golos marcados (acabou 5-3 para o Real). É o sexto ano seguido que a Supertaça de Espanha se realiza no país do Médio Oriente, a prova mais reincidente na rendição ao retorno financeiro que significa deslocalizar competições nacionais para o Médio Oriente. Em breve, o próximo país a levar a disputa de um troféu para essas latitudes a troco de dinheiro, implicando que os adeptos nacionais tenham de gastar uma fatia maior das suas finanças para estarem no estádio a torcer pelo seu clube, pode ser Portugal.
A ideia não é nova, nem escondida, mas, esta quinta-feira, voltou a ser defendida pela Liga de Clubes. Em entrevista à “Renascença”, o diretor-executivo, Rui Caeiro, explicou que a entidade está focada no mercado que existe no Médio Oriente. “A ambição [desses] países em ter este tipo de competições tem estado a incrementar-se de forma significativa. É objetivo aproveitar essa oportunidade que se está a gerar. Claro que entendemos a vontade de outras geografias, mas obviamente que o Médio Oriente ganha a vantagem com o foco e o investimento em espetáculos desportivos que, neste momento, é muito significativo”, admitiu, sem pudores.
O dirigente reforçou que “não podemos deixar de aproveitar esta oportunidade”, uma ideia já vincada, em novembro, por Pedro Proença, quando deu uma entrevista à Tribuna Expresso. Dizia então o presidente da entidade que a Taça da Liga “tem um propósito comercial e de implementação de marca”, assumindo a vontade dos clubes em copiar “o modelo da La Liga e Série A”. A explicação: “Temos que começar a olhar para o futebol numa perspetiva de dimensão internacional. [Na Arábia Saudita] temos um conjunto de jogadores, de treinadores, e em que, obviamente, a vertente económica ou financeira também é muitíssimo importante.”
O presidente da Liga estava a “falar de fazer uma final four no mercado internacional”, onde “podemos dar notoriedade à nossa Liga, mostrar aquilo que temos de melhor, que é o jovem jogador com talento, não me parece que seja uma má política”. O contrato assinado com a autarquia de Leiria para receber a final four da Taça da Liga termina este ano - agendada para entre 23 e 27 de janeiro - e, a partir daí, a entidade pode negociar com outras paragens.
Em Riade, além dos assobios ouvidos durante a homenagem a Franz Beckenbauer, muitos dos adeptos que estiveram no Mrsool Park também dedicaram silvos especiais a Toni Kroos. No caso do médio do Real Madrid, compreende-se ter sido visado. O ano passado, o alemão criticou, por várias vezes, o futebol da Arábia Saudita e os jogadores jovens ou no auge da carreira que para lá foram. “Tudo gira em torno do dinheiro. Ir para a Arábia Saudita é uma decisão pelo dinheiro e contra o futebol. A ausência de direitos humanos é o que me impediria de ir para lá jogar”, confessou à “Sports Illustrated”.
Enquanto aquecia para entrar em campo, já na segunda parte, e durante o tempo em que orquestrou as posses de bola do Real, o internacional germânico foi insistentemente assobiado. Nunca esboçou uma reação. Mais tarde, após a vitória, preferiu o sarcasmo ao escrever na rede social X: “Hoje foi divertido! Público fantástico ”
As experiências de Espanha, Itália e França
Em Espanha, uma primeira experiência aconteceu com a Supertaça de 2018 em Tânger, Marrocos.
A partir de 2019, a competição mudou de formato, com meias-finais e finais a disputarem-se na Arábia Saudita, num contrato altamente lucrativo: segundo o “El País”, uma empresa pública do país paga €40 milhões anuais para receber o torneio, valor a dividir entre Federação, clubes e agência que intermediou o negócio. Ora, essa agência foi a Kosmos, de Gerard Piqué, que recebe €4 milhões por cada edição da Supertaça na Arábia. Como estas comissões começaram ainda quando o espanhol atuava no Barcelona, o negócio causou grande polémica.
Inicialmente, foi assinado um contrato válido por três edições, de 2019 a 2021. Em plena pandemia, a Arábia Saudita decidiu renovar o contrato até 2029, mantendo os mesmos €40 milhões anuais, num encaixe financeiro muito importante num momento especialmente difícil para o futebol espanhol.
Itália foi o país pioneiro nisto de levar, regularmente, a Supertaça além-fronteiras. Em 2012 e 2015, o troféu decidiu-se na China, e em 2014 e 2016 no Catar. Em 2018 e 2019 passou para a Arábia Saudita, sendo interrompido pela pandemia e voltando em 2022.
Segundo o portal especializado “Calcio e Finanza”, o acordo para disputar a Supertaça italiana na Arábia Saudita foi renovado por seis anos. Nas últimas edições, o contrato rendia €8 milhões, passando agora a €23 milhões por época.
França tem sido o país com a Supertaça mais itinerante. Em 2016 realizou-se na Áustria, em 2017 em Marrocos, em 2018 e 2019 na China e nos dois últimos anos em Israel. Em 2023, o troféu será na Tailândia, que pagará €4,5 milhões de euros.