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“Nunca mais caminharei sozinho”: o profeta Klopp despede-se do Liverpool e de Liverpool, “a cidade dos braços abertos”

Depois de quase nove anos, oito títulos e uma conexão emocional difícil de replicar, o alemão orientou os reds uma última vez, terminando “em paz" e pedindo aos adeptos que cantassem o nome de Arne Slot, o seu sucessor. Garantindo que, se a cidade “precisar” de si, ele estará disposto “a ajudar”, Klopp vai-se embora com o presidente da câmara municipal de Liverpool a classificá-lo como uma espécie de “Papa” de Liverpool
Andrew Powell

Tudo se viu e viveu uma última vez na tarde de 19 de maio de 2024. A última vez que o treinador de boné de beisebol pisou Anfield como dono do banco local, a última vez que se sentou acenando para os adeptos, a última vez que se virou para a The Kop, a mítica bancada do mítico estádio, e esmurrou o ar ao compasso marcado pelos cânticos dos fiéis.

A referência religiosa, aqui, é abençoada por uma figura política: Steve Rotheram, presidente da câmara municipal de Liverpool, disse à “ESPN” que Jürgen Klopp “é tão venerado na cidade como o Papa é no catolicismo”. A juntar à carga política e religiosa, Curtis Jones, médio do Liverpool nascido em Liverpool, colocou um toque familiar: “Ele é o avô de toda a cidade”, comentou.

Talvez seja esta conexão emocional com um clube e uma região, este cordão umbilical que une treinador e adeptos, figura desportiva e social, a maior marca dos anos de Jürgen Klopp nos reds: mais do que a soma dos oito títulos e além da Premier League conquistada 30 anos depois; mais profunda do que a Liga dos Campeões de 2019; e mais funda do que a estatística que diz que ele é o treinador com melhor percentagens de vitórias na história (60,9%). Ao longo de quase uma década, Klopp abraçou Liverpool e Liverpool abraçou o alemão.

2015-2024: com uma vitória por 2-0 contra o Wolves, Jürgen Klopp orientou o 491.º e último jogo à frente do emblema de Anfield. Quando chegou, o Liverpool era um gigante adormecido, um pentacampeão da Europa longe da elite da bola, que acabara cinco das últimas seis edições da Premier League abaixo dos cinco primeiros. Na sua primeira conferência de imprensa, Klopp disse ter como objetivo “tornar os descrentes em crentes”, recuperar a esperança, fazer do passado não um peso comparativo, mas sim um legado a respeitar, e tornar o futuro não uma desgastante caminhada sem destino claro, mas uma viagem rumo a um horizonte de prosperidade.

Ao longo destes quase nove anos, todos os troféus disputados foram conquistados pelo menos uma vez, à exceção da Liga Europa. Uma Liga dos Campeões, um Mundial de Clubes, uma Supertaça Europeia, aquela liga inglesa que escapava há 30 anos, uma FA Cup, uma Supertaça de Inglaterra, duas taças da liga. Tudo pedaços de metal que engordam o museu, mas que contam apenas parte de uma história de conexão e amor.

Liverpool despertou para o último domingo de Klopp disposta a dar uma última prova de devoção ao alemão que recolocou o emblema entre os melhores do mundo. Ao longo dos últimos dias, uma chuva de cartas de despedida inundou o clube. O técnico leu-as e disse ter “ficado lavado em lágrimas” com as palavras que lhe foram sendo dirigidas.

Antes da separação, o único homem a interromper a hegemonia do Manchester City na Premier League também quis deixar escrito o seu adeus. Numa carta aberta publicada no jornal “Liverpool Echo”, jurou amor à terra dos Beatles, que descreve como “a cidade dos braços abertos”. “Um sítio que te dá as boas-vindas como um filho e não se preocupa de onde vens. Simplesmente quer que sejas parte dele, e eu não poderia estar mais grato por me terem dado esse privilégio da pertença. Uma cidade que te recebe assim merece, pelo menos, uma despedida à altura”, lê-se no texto.

Coerente com um trajeto em que foi mais do que o treinador do Liverpool, assemelhando-se quase a um guardião de Liverpool, Klopp pareceu vestir a capa de super-herói na penúltima conferência de imprensa que deu como técnico red: “Não imagino que o clube precise de mim no futuro. Sei que algumas pessoas acharão isto cómico, mas, se a cidade precisar de mim, estou aqui. Quero ajudar, seja de que forma for”.

Não são os resultados, é a viagem

No tempo dos superclubes, no mundo das grandes hegemonias, na era em que convivem na mesma liga equipas com recursos financeiros tão díspares, ganhar uma Premier League em nove pode parecer pouco para os padrões do City - e ser uma vez campeão da Europa numa década faria o Real Madrid entrar em depressão. Mas ver a devoção que Anfield demonstrou para com Klopp, quase transformando o alemão num profeta, evidencia que houve mais nesta relação do que resultados, troféus ganhos e finais perdidas — o seu Pool foi vice da Liga Europa 2016, da Liga dos Campeões 2018 e 2022, da Premier League 2019, apesar de ter feito 97 pontos, e 2022, não obstante os 92 pontos.

Parte das últimas palavras de Klopp foram, justamente, dedicadas a esta relação “difícil de explicar”. “Vivemos num mundo em que, para os outros, o que importam são os resultados. Aqui, aprendemos que não é dramático não ganhar sempre tudo e essa é uma lição de vida incrível. Isso não é o mais importante, mas sim a viagem, o caminho, esta união que eu amo”, considerou o homem que vai, agora, fazer uma pausa na carreira.

O adeus

Em janeiro, Klopp admitiu que estava a ficar “sem energia”. Esgotado, colocou um ponto final na ligação ao Liverpool.

Pouco antes do final desta época de despedida, chegou a pensar-se num adeus glorioso. Em março, vencer todas as competições ainda era possível, mas só a Taça da Liga foi conquistada. A equipa caiu nos quartos de final da Liga Europa, contra a Atalanta, também nos quartos da FA Cup, frente ao Manchester United, e uma série de apenas um triunfo em quatro jornadas da Premier League em abril afastou os reds da corrida pela excelência que o ritmo pontual do Manchester City impõe.

Ainda assim, depois da despedida contra o Wolverhampton, o alemão não mostrou cansaço nem frustração, assegurando estar “em paz”, sendo “fantástico” ter “passado boa parte da vida” em Liverpool e no Liverpool.

Depois do derradeiro triunfo, que leva o Liverpool a terminar a Premier League em terceiro, Klopp vestiu uma camisola, utilizando-o em toda a cerimónia de homenagem e despedida. “Nunca mais caminharei sozinho”, via-se nas costas, estando um “obrigado” estampado na parte da frente.

Houve abraços emocionados com jogadores, incluindo um choro conjunto com Virgil Van Dijk, o seu capitão, a contratação que, em janeiro de 2018, trouxe a estabilidade defensiva que faltava, o homem cujo auge coincide com o melhor período da era Klopp: nos dois anos e 10 meses entre a transferência do neerlandês e a rotura de ligamentos cruzados que este sofreu em outubro de 2020, o Liverpool ganhou uma Premier League, uma Champions — e foi a outra final —, um Mundial de Clubes e uma Supertaça Europeia.

Parte da equipa de Klopp que colocou os reds no topo do mundo já saiu, de Mané a Firmino, de Henderson a Wijnaldum, de Fabinho a Milner. O Liverpool vive uma reestruturação e o alemão pede que, agora, se olhe para o futuro: “Adoro este plantel, há tanto potencial. Haverá mudanças aqui e ali e tenho imensa fé nelas”.

Perante um estádio entregue ao tributo ao treinador que se define como “um tipo normal vindo da floresta negra”, Klopp quis que a tarde não fosse só feita de passado. Referindo-se aos adeptos do Liverpool como “o superpoder do futebol mundial”, pediu que se “desse as boas-vindas ao novo treinador”, começando a cantar o nome de Arne Slot, o neerlandês que vem do Feyenoord para o substituir. Passagem de testemunho feita.

Os arredores de Anfield estão cobertos de murais de homenagem a Jürgen Klopp. A figura do alemão está pintada nas casas, ladeada de frases como “algumas viagens duram para sempre”, “Jürgen fez-nos lembrar de quem sempre fomos”, “para sempre um de nós” ou, simplesmente, “obrigado”. A avaliar por aquelas paredes, tomando como medida aqueles escritos na pedra, Klopp despediu-se de Liverpool e do Liverpool, mas o clube e a cidade não se esquecerão de Klopp.

James Baylis - AMA/Getty