O Barcelona, ou Barça para os mais próximos que no caso será toda a gente que fala de futebol, é um clube sui generis, incaracterístico devido a várias das suas características peculiares. Uma delas dá-lhe, por exemplo, o hábito de ter dezenas de vice-presidentes em simultâneo, outra, mais recente, são as permeáveis suscetibilidades que foram feridas após um jogador se comportar de uma maneira que raramente se vê nos futebolistas atuais por provável receio de que a sua honestidade construtiva e sem ataques seja confundida por traição.
A meio da semana, na terça-feira e com ar entristecido, Ilkay Gündogan colocou-se diante do microfone. Homem de não muitas palavras, o médio alemão que chegou esta época ao clube foi cândido e frontal como em outras alturas da sua carreira, sem receio em dizer o que pensa após a eliminação do Barça nos quartos de final da Liga dos Campeões de forma sofrível, porque muito sofreram os jogadores a partir dos 29 minutos: ficaram com menos um campo frente ao Paris Saint-Germain devido à expulsão do precipitado Ronald Araújo, que abalroou Barcola à beira da área após falhar um passe e a jogada o obrigador a ir apagar o fogo contra a corrida do jovem francês. A partir daí, a equipa que ganhava por 1-0, em casa, começou a perder.
“Estava tudo nas nossas mãos e deixámos escapar da forma mais simples para o PSG. Essa é a parte mais desapontante”, foi o primeiro desabafo de Gündongan, na flash interview, antes de concretizar o detalhe da sua análise sem pudores: “Nestes momentos cruciais tens de ter a certeza que chegas à bola e, se não chegares — de novo, não sei se ele tocou ou não na bola —, tens de te manter afastado. Claro que ali eu preferia ter concedido um golo ou talvez dar ao avançado uma situação de um para um [com o guarda-redes], se bem que ele dominou a bola bastante para longe, nem sei se conseguiria apanhá-la, ou dar-lhe a oportunidade e deixar, se calhar, o nosso guarda-redes salvar-nos. Ou até sofrer golo, sabes?, porque ficar com menos um jogador tão cedo na partida simplesmente mata o teu jogo.”
Na ressaca do jogo, era um futebolista do Barcelona sem lugares-comuns no discurso nem frases formatadas a dar palavras ao que pensava, com oratória no plural, analítico, a dar a sua opinião para o mundo. Falou num erro e depois de outra falha que teve a ver com um português, Vitinha, marcador do segundo golo dos quatro que o PSG deixaria na partida: “De novo, um erro, penso que temos de sair e não o deixar rematar, porque ele estava tão sozinho e, sinceramente, isso não é nada que não tenhamos treinado, o homem mais perto da bola tem de cair em cima. Estávamos três para três fora na área, após o canto, depois o Vitinha era o quarto homem e alguém tem de pressionar. Ninguém o fez, ou fizemos demasiado tarde, e foi um bom remate que fez o segundo golo. Não era, de todo, necessário, mas agora é tarde demais.”
Com a desilusão pintada de fresco, Gündogan usou a auto-crítica coletiva, postura rara no futebol, para analisar o que tramou a equipa e iniciar a digestão de mais outra perda sofrida pelo Barça nesta época que palpita terminar sem novos títulos a entrarem no museu do clube. Eliminados da Taça do Rei, fora da Liga dos Campeões e derrotados na final da Supertaça pelo rival que vê a liderar o campeonato a oito pontos de distância, os catalães estão a montar um desfecho já de si melancólico pela saída de Xavi no final da temporada, decidida pelo próprio. Campeão o ano passado e incapaz de estabilizar a equipa nesta volta ao carrossel, o treinador também falou para acalmar o tumulto gerado pela receção das palavras ditas por quem não teve problemas em falar.
No dia seguinte à tragédia contra o PSG, o uruguaio Ronald Araújo compareceu num evento já programado, a intervenção de Gündogan veio à conversa e o defesa central, lacónico, apenas disse: “Prefiro guardar para mim o que penso. Há valores e códigos de balneário que acho que têm de ser cumpridos.” A repercussão do que disse asseverou o dito pelo médio alemão, vindo de quase uma década na Premier League onde o contexto onde caem as coisas ditas por futebolistas é outro. Quando o Barcelona voltou a treinar, na sexta-feira, o que se diz muito mais em Espanha do que em Inglaterra pôs microfones diante de vários jogadores da equipa que falaram para diferentes meios de comunicação.
Assim, entre o defesa Jules Koundé, o guarda-redes Marc-André Ter Stegen, o capitão Sergio Roberto e o antigo líder Carles Puyol, também auscultado quanto à polémica, todos diminuíram o eventual conflito entre o uruguaio e o alemão, explicaram que o atrito se resolveu cara a cara, com todos presentes e atribuíram o ruído mais à perceção externa do que a reais problemas sentidos no balneário. “Acho que é assim que as equipas mais bem-sucedidas crescem e melhora, a comunicarem, olhando-se nos olhos e falando para o benefício de cada um”, disse o próprio Gündongan, que o Barcelona pôs diante das câmaras a falar durante quase três minutos sobre o que já foi (tragédia com o PSG) e o que aí vem. Pouco de inocente ou de coincidência teve a decisão de ser o alemão, um dos mais experientes jogadores do Barça embora só chegado esta temporada ao clube, a fazer a antevisão institucional a próximo delicado momento que se segue.
Os catalães vão, este domingo (20h, Eleven Sports), ao Santiago Bernabéu, renovado estádio do Real Madrid enquanto ainda têm a sua casa em obras - longe do Camp Nou, têm jogado no impessoal Montjuic, recinto olímpico de Barcelona onde a distância para o calor dos adeptos é palpável - e lambem as feridas abertas pela intervenção pública de Gündogan. Mas o impacto das palavras não ficou aí.
Outro dos futebolistas a falar à comunicação social, João Cancelo deu uma entrevista à “ESPN” na qual revelou que não dormiu no dia seguinte à derrota com o PSG. Foi o português quem cometeu o penálti que daria o terceiro golo aos franceses, falha que o perturbou bem menos do que outra consequência do jogo. “Há comentários no Instagram a desejar a morte à minha filha que ainda nem sequer nasceu. São ofensas à minha companheira, à nossa bebé. É um mundo cruel e temos de saber viver nele. Eu sei, mas não já sei o que dizer. Eles não o diriam na minha cara, porque aí teríamos um problema, mas [nas redes sociais] escrevem o que quiserem”, lamentou defesa que o Manchester City emprestou ao Barcelona, esta época, ao resumir que muitos “não pensam na pessoa que existe por trás do jogador que veem na televisão”.
É neste estado de tumulto gerado por palavras ditas e recebidas que o Barcelona joga não a época, mas porventura a honra, no clássico com um Real Madrid que por estes dias vive num ambiente oposto. Líder confortável da liga espanhola (são oito pontos a mais), acaba de chegar às meias-finais da Champions com uma prestação algo nova na forma se bem que igual no desfecho à tradição merengue de sempre descortinar uma escapatória para sobreviver na competição que não se entranha tanto em qualquer outro clube.
Na segunda mão frente ao Manchester City que procedeu a um 3-3 no primeiro jogo, o Real contentou-se em entregar por completo a iniciativa aos ingleses de Pep Guardiola que vivem de dominar as operações com a bola. As artimanhas criativas de Vinícius Júnior e Rodrygo no ataque mantiveram-se discretas durante o laborioso trabalho de Toni Kroos, renascido para a omnipresença aos 34 anos, do incansável Federico Valverde ou do talento estelar de Jude Bellingham que também lhe serve para ser um capataz quando é necessário. O Real Madrid prevaleceu nos penáltis e treinador Carlo Ancelotti tem a equipa onde quer - com a mira posta na previsível conquista do campeonato e com aquela aura de sempre desencantar uma solução para ganhar restaurada na Liga dos Campeões.
As palavras ouvidas, nos últimos tempos, de bocas merengues têm sido outras, como as que Bellingham disse casualmente entre jogos com o City para contar que vira Ancelotti a bocejar antes da partida, lhe perguntou se estava cansado e o técnico retorquiu com um pedido para a equipa o acordar. O clássico contra o Barcelona não conta para a Champions inculcada na alma histórica do Real (já a ganhou 14 vezes), mas, pelo jogo que é, outra das coisas ditas pela sapiência despreocupada de Ilkay Gündogan também se aplicará ao que aí vem:
“A forma ou o momento em que estás não conta assim tanto nesta competição, podes chegar com muitos jogos ganhos nas últimas semanas e tanta confiança, mas ações decisivas e momentos cruciais vão ora recompensar-te, ou castigar-te.”